quinta-feira, 28 de dezembro de 2006

Elementos

Pois é, caríssimos leitores. Havia eu escrito algo nestas precaríssimas folhas com a tinta de urucum e o destino tratou de fazer desaparecer todo o trabalho, remetendo-o para os misteriosíssimos desvios dos elétrons reciclados. Perdi tudo.

Isso vem provar o que comentava: que existe uma conspiração dos elementos. Aquela que faz desaparecer caminhões lentos em estradas planas, desertas e de pista dupla e fá-los surgir nas de serra, lotadas e de pista simples. A praga da pequena fila do banco transformar-se em tortura já que da inocente sacola de pães da pessoa à frente é extraído um volume petista de cédulas - todas a conferir - gerando uma série infindável de documentos a serem autenticados pelo pobre caixa.

Este náufrago, já duplamente infeliz pelo calor e por esses tais elementos fazerem nevar nos antípodas em pleno verão ao invés daqui, já havia conseguido pelo menos driblar a ameaça da chuva pegá-lo - quando em estado de motorista - desprevenido em estacionamento sem marquise: basta ter a todo tempo um guarda-chuva no banco traseiro do automóvel. Nunca choverá.

Pois às vezes nós nos distraímos, queridos herdeiros e esses elementos nos pegam enquanto o diabo esfrega um olho. Dois dias atrás deixei meu veículo aos cuidados do eficiente lanterneiro, para que reparasse a lembrança que um desconhecido Papai Noel havia perpetrado contra seu pára-lamas; não se sabe onde. Hoje, dia da pintura, choveu pela primeira vez em vinte dias !

Quem manda tirar o guarda-chuva do carro?

Em tempo:
O veículo não ficou pronto, a conta que tinha que ser paga hoje não veio pelo correio e, a caminho do banco, já que não há segunda via, choveu e eu estava sem guarda-chuva. Grande dia!

terça-feira, 26 de dezembro de 2006

Calor


Derrete-se, caríssimos leitores. Um calor senegalesco. Pior que o do Golfo Pérsico, onde podia-se fritar um ovo sobre a poita. Nas ruas as pessoas zanzam e fluem para os microclimas polares dos bancos, onde enfrentam filas enormes unicamente para ficar lá dentro: chegando ao caixa, voltam ao final delas.


Antigamente era nos refrigerados cinemas que se refugiava o vil mortal, egresso da canícula. Pagava-se uma entrada às duas da tarde e deixava-se ficar, cochilando, até meia-noite. Agora, estafermos enxotam quem quer que esteja na sala de projeção à cada final de sessão. Um desrespeito escandaloso.


Este pobre náufrago escocês vagou pelas avenidas insulares hoje à tarde, deitando meio palmo de língua seca para fora. Lá pelas tantas, um caminhão-pipa da prefeitura passou, jorrando água pela traseira. Aquilo batia no asfalto e imediatamente fervia, tornando a calçada um caminho de vapor.


Finalmente ao covil, fui à leitura das gazetas. Quase me cai o queixo, amicíssimos, ao deparar-me com despacho dos antípodas dando conta de nevasca em Austrália; em pleno verão!


Amaldiçoei minha sorte, queridíssimos. Que mal fizemos aos céus?


segunda-feira, 25 de dezembro de 2006

domingo, 24 de dezembro de 2006

sábado, 23 de dezembro de 2006

Ho, ho, ho #3 - Papai Noel zangado

Como saber se você não foi bonzinho (ou mauzinho mesmo).

sexta-feira, 22 de dezembro de 2006

Ho, ho, ho #2


Tive que censurar. Vem que um espírito de porco resolve encher o saco do Papai Noel.

Ho, ho, ho #1


Festas e música



Na longa sucessão de agonias de cada fim de ano, queridíssimos herdeiros, a conjunção de festas e música não pode deixar de ser mencionada.

Em Europa era hábito colocar-se música em segundo, terceiro ou quarto plano; unicamente para alegrar um pouco o ambiente. Se a celebração contemplasse a música, então todos se manteriam em silêncio sepulcral até que o intérprete finalizasse sua arte.

Nesta tropical ilha, caríssimos, há um eterno conflito: em qualquer festa é tocada música em volume altíssimo. Assim a quem deseja dialogar, trocar idéias só restam duas opções: gritar ou desistir. Isso quando a música é de estilo tolerável, já que misteriosamente, quanto pior ou mais vulgar, mais alto ela é tocada, seja na casa do amigo ou na casa do vizinho, ou nas ruas. Meus ouvidos, acostumados à música clássica são violentamente agredidos por estilos que vão da emulação de cães sendo longa e dolorosamente torturados; caso da música de Goyaz ou de estridentes uivos temperados a percussão ensurdecedora; caso da música soteropolitana. Esses são dois expoentes. Infelizmente não estão sós pois existe um círculo inferior neste inferno que é o da boçalidade musical dos subúrbios da antiga corte e dos sambas de latrina bandeirantes.
Já estão apavorados, queridíssimos? Pois saibam que ocasionalmente o espírito selvagem aflora em toda a sua virulenta realidade e apela às terriveis engenhocas portáteis inventadas em Cipango. Com elas, além da péssima música, indivíduos totalmente entorpecidos pela aguardente local, tomam de microfones e se põem a massacrar os ouvidos alheios com escalas musicais totalmente desconhecidas no Ocidente. Algo de tal forma dantesco que muitos acharão que minto, mas é verdade e não foram poucos os que pereceram em atroz agonia após poucos minutos desse horror.




Até na rua, existem infelizes bicicletando caixas negras povoadas por demônios. Talvez fugindo da milícia.

Já na hora de apreciar-se o trabalho de qualquer intérprete, amantíssimos herdeiros, em qualquer lugar acham-se os insulares e demais habitantes destes trópicos no direito de conversar em boa e alta voz, competindo com o artista que mesmo armado de possantes equipamentos amplificadores de seu desempenho, por vezes dá-se por vencido e abandona o palco para ir chorar sua miséria em um canto em companhia de garrafas e vira-latas. Provavelmente vingança, por não terem conseguido tagarelar nas festas!

Surrealismo puro, leitores !

Lugares-comuns

Vinte e tantos anos são tempo suficiente, caríssimos, para notar um padrão nas gazetas e folhas de aviso insulares. Como é dificílimo que ocorram terremotos, furacões, maremotos ou guerras a cada dia - algo com que imenso folgariam e mais ainda seus patrões - há de se garimpar notícia onde houver, nem que seja repetição de anos passados. Nem os escândalos da corte, de tão repetitivos e impunes, geram atenção.

Uma das mais interessantes diz respeito à escasíssima indumentária que mal veste as moçoilas ávidas por sol e areia. Já alcançaram o mínimo. Menor do que isso só sem a utilização de panos e costuras. Pois vejam só, ilustres passageiros, que todo ano soltam a notícia que "este ano, os biquínis vão ser menores, mais comportados". Acredito vivamente que os periodistas escrevam essas tolices às gargalhadas já que têm certeza que serão desmentidos num piscar de olhos: deve ser um primeiro de abril extemporâneo, avivado pelo calor do verão. As tais moçoilas, comportando-se então abominavelmente, reduzem a areia essas trepidantes notícias em uma única manhã de sol.



Outra coisa extremamente interessante é o comportamento social. Basta ocorrer uma tragédia em bairro pobre que inevitavelmente seremos informados que naquele lugar "o ambiente era de revolta". Pois é. A três por quatro ocorrem revoltas em bairros populares ao passo que em bairros nobres provavelmente encontraremos faniquitos ou vapores. Isso pode ser tanto em conseqüencia de falta d'água, mosquitos, alto-falantes de templos protestantes ou uma simples constipação. Invariavelmente o pobre revolta-se ao passo que o rico suspira de aborrecimento ou tristeza, mas isso não é notícia.

Outra coisa bastante exótica é a história de "praticar preços". Homessa! Desde quando preço é guitarra, que se pratique? Preço cobra-se, impõe-se, determina-se! Seria algo obrigatório o emprego de tamanha estultície? Os periodistas são pessoas simpáticas e sensíveis, fico a imaginar com que horror são forçados a isso.

Um terror esse dia-a-dia das gazetas, excelentíssimos. Água sai de pedras. Afinal de contas, feijão com arroz é o prato diário.

Enfim. Já passaram sob a ponte as reportagens sobre "dicas" de presentes, galerias comerciais lotadas, calor, falta de dinheiro, falta de vergonha dos edis, falta de neve, preços exorbitantes do bacalhau e das nozes e do que mais for em dezembro. Agora só nos resta aguardar a dose anual de videntes e suas previsões de ano-novo, sempre erradíssimas.

quinta-feira, 21 de dezembro de 2006

Camaradagens



Queridíssimos amigos. Desde que pisei nas escaldantes e grossas areias de Camburi, após a longa nadada de cem metros que se seguiu ao encalhe na ilha do Socó, me vi enredado em um meio singular.

Antes de mais nada, tive que ser aceito pelos desconfiadíssimos insulares, cuja atitude é secular pois que estas terras eram fortaleza contra a ingressão de estrangeiros sequiosos pelas riquezas das Minas Gerais. Isso levou algum tempo, mas que superado, fez este estranho ser integrar-se a uma sociedade que tem inúmeras regras não-escritas, protege com zelo os seus e que - como tudo - está em mudança. Pois meus herdeiros, nunca ficava-se só neste lugar; fora-o para fins de comentários como para solidariedade. Dificilmente um membro do círculo interno insular ficava aguardando transporte coletivo ou mecânico sem que, incontinenti, parasse um conhecido a ajudá-lo. Da mesma forma, era-lhe concedido tratamento preferencial em casas de mercado, veículos de aluguel e até aeroportos. Exagero? A pobre companheira deste naufrago chegou a ganhar carona em táxis; algo inédito haja visto a má fama da classe. Dizia-se que um autóctone podia sair de casa sem um tostão no bolso, almoçar, fazer compras e abastecer seu veículo; bastando para isso ir aos lugares certos. É claro que levas e mais levas de estrangeiros fascinados com essas gentilezes corromperam a prática e isso tornou-se raro. Esse aumento da população fez com que os insulares da gema diluissem-se dentre mais e mais outsiders. Estupor dos estupores, é comum agora viajar-se em aeronave sem conhecer viv'alma a bordo! Um escândalo.

Enfim. Não sei se é por ser fim de ano, ou por resquício dessa doce época, que este náufrago foi ontem atendido em oficina mecânica, furando a fila (sem pedir), tratado pelo nome - não obstante não lá pisar há anos - e cobrado uma bagatela por excelente conserto. Ainda por cima recebeu brindes !



Isso não tem preço, caríssimos...









quarta-feira, 20 de dezembro de 2006

Vestimentas


Ao cá arribar, salvei o que pude do galeão, encalhado lá na ilha do Socó. Consegui ferramentas, móveis, instrumentos, livros e até roupas, que lavei e arrumei em meu covil.


Pois, herdeiros meus, um belo dia fui convidado a pequeno convescote em casa de insulares. Vesti-me à vontade, como é do hábito da terra, aluguei um fiacre e cheguei pontualmente ao lugar de meus anfitriões. Escusado dizer que fui o primeiro, sendo que a dama ainda estava ao chuveiro e o cavalheiro recém adentrava a residência sobraçando cervejas e quitutes. Ajudei no que pude - que não foi no banho da dama, infelizmente - e refestelei-me à espera dos demais convidados.


Leitores queridos; lá pelas tantas começaram a chegar os casais e as damas sós. Eles vestidos mais ou menos como eu. Já elas, estavam prontíssimas para a ópera ou a recepção a algum arquiduque ou embaixador: sedas, brilhantes e complicadíssimos penteados. Foi por um triz que não escapei para meu covil a fim de resgatar o uniforme de gala do capitão e só não o fiz por reparar que os cavalheiros não participavam daquele desfile particular.


Pouco a pouco comecei a reparar no apuro que as damas locais dedicam às suas vestimentas. Algo assombroso pois que para ir a uma simples padaria estariam prontas para uma boda real.


Já os cavalheiros, com o passar dos anos, deram para levar ao estado de arte o seu despojar. Deambulam por aqui e ali com simples bermudões, camisetas sem mangas, sandálias de plástico e umas bolsas ao cinto. Seu estado de satisfação extrema ocorre ao debruçarem-se, despenteados e macambúzios, empurrando carrinhos de compras das grandes mercearias.


Existem, no entanto, infelizes insulares que andam trajados de terno e paletó, geralmente negro, o que os faz transpirar abundantemente. São figuras exóticas que podem ser vistas freqüentando misteriosíssimos templos aparentemente dedicados à construção civil (pois instrumentos de pedreiro decoram sua entrada) ou passando horas à porta de casas de pasto barulhentas e noturnas, ou ainda no imenso palácio pintado de rosa e azul onde empenham-se em derreter os dobrões do Tesouro Estadual.


Eu continuo no meu meio-termo, temeroso do que possa acontecer a quem quer que fuja desses uniformes, que parecem ser mandatórios.

Intervalo - de novo


E quem foi que disse que intervalo é só um? Sim, fiz forfait por dois dias, mas amanhã, que já é hoje, pois que a ampulheta marca uma da manhã, voltarei com mais memórias.


Agora vou recolher-me ao hammock de meu covil. Rezem para que não chova e que os mosquitos tenham piedade de mim. Quanto aos vizinhos, pobres infelizes: mais uma noite sob o manto protetor de meus roncos.

domingo, 17 de dezembro de 2006

As pontes


Como toda ilha moderna e industriosa, esta aqui necessita de comunicação física eficiente e segura com o continente. Os generosos céus a situaram a distância reduzida da grande massa de terra e após séculos de catraias e canoas, ergueram-se pontes.


Curiosamente o insular só considera como pontes as do lado sul. Assim a primeira ponte lançada sobre a baía - apelidada de "Cinco Pontes", apesar de ostentar nome oficial pouco falado: "Florentino Avidos", segundo os locais, ou Ávidos, como grafam os mapas impressos em terras bandeirantes - e considerada como a primeira de todas, havia sido precedida em alguns anos por outra ponte, do lado norte a qual, então, nomearemos de ponte zero. Hoje é de concreto, mas continua a ser chamada por alguns de "Ponte de Tábuas", já que antigamente era de madeira. Coisas daqui.
Mais tarde, construíram a Segunda Ponte, que não o era, mas cujo apelido originou a fuzarca que tento descrever, já que antes disso e também do lado norte já havia sido erguida outra, além da Zero. (Esta anônima e modesta ponte será, em nossos cálculos, a ponte Um e Meio.) Pode existir um hipotético nome oficial, mas como é próprio Real está abandonada e imunda e ninguém se lembra dela, a não ser para acidentar-se de quando em vez.
Finalmente projetou-se a Terceira Ponte (a qual, parece, também tem um nome qualquer, devidamente ignorado) que, como todo empreendimento do Reino, foi projetada no lugar mais largo da baía, e em curva, a fim de que proprocionasse o máximo de empregos e lucros à realeza. Natural, sintomática e simultaneamente à construção, sumiram, como que por encanto, os dobrões de ouro que a pagariam e assim imobilizou-se e arrastou-se a obra por anos a fio. Quando finalmente ficou pronta, após novas remessas de moedas, constatou-se que uma das maiores pontes do Reino havia sido deixada à própria sorte sobre águas Reais pois ao baixar às terras muncicipais e estaduais do continente não se ligava diretamente a nenhuma avenida ou estrada importante, fazendo com que tanto insulares quanto continentais acudissem a ela por vias transversas, cheias de curvas e meandros. Provavelmente implicâncias da Corte com os poderes locais. Hoje está arrendada a alguns amigos do Rei.
Entrementes, a tal ponte Um e Meio ganhava irmã gêmea e independente, mas que também não recebeu numeração sabendo-se, por fonte segura, que cada uma delas presta homenagem a ilustres desconhecidos. Um na ida e outro na volta. Uma delas, rigorosamente podre, quase caiu no ano passado. Talvez suas vencidíssimas obras de conservação tenham esbarrado na burocracia do Patrimônio Histórico


Mais tarde, foi feita mais uma ponte, também do lado norte, que não recebeu o apelido de Quarta Ponte (ou seria Terceira Ponte e Meio? Ou Ponte Terceira e Mais Metade?). Como é lamentável a perda de certas tradições aqui pois nem apelido a pobre ponte ganhou! Talvez a população já tivesse perdido as contas e resolvido, por dúvida insuperável, não dar curso à numeração ou, realmente, acreditasse que continente era do lado sul, já que para o lado norte a distância é tão ridícula que a ilha não parece ser ilha. Neste caso e de maneira surpreendente, já que a população insular, pouco afeita a homenagear estrangeiros e célebre por desconhecer qualquer nome de rua, chama-a pelo seu nome correto, atribuído a um não-autóctone !


Em resumo, existem sete pontes ligando a ilha ao continente: uma é conhecida como "Cinco Pontes" - apesar de ser uma só; outra é a "Segunda Ponte", apesar de ser a terceira; outra ainda é "Terceira Ponte", apesar de ser a quarta ou quinta; mais uma é chamada de "Ponte de Tábuas", apesar de ser em concreto (mas devo confessar que outros a chamam de "Ponte da Passagem"); por fim, duas receberam apelidos genéricos ("Ponte de Camburi"), as tais que têm nomes diferentes para cada mão de direção: um notável feito de bajulação oficial. A única que todos conhecem pelo nome correto é aquela que imortaliza certa figura do meio automobilístico, que provavelmente nunca cá botou seus pés ou rodas.
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Isso sem falar da "Ponte Seca", mas creio existirem limites para a credibilidade de meus herdeiros.
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Como muito bem o observou, de certa feita, uma brilhante insular: "Esta ilha é uma delícia"!


sábado, 16 de dezembro de 2006

Tradições


Como todo súdito da coroa britânica - a contragosto pois nós, escoceses ainda não concordamos inteiramente com essa anexação - este náufrago é pessoa apega a tradições. Uma coisa que me encantou nesta ilha foi que algumas delas eram respeitadas; pelo menos à época do naufrágio. Infelizmente, com o passar do tempo, algumas desapareceram por má vontade local ou simplesmente por mudança do mundo ou dos hábitos:


A Enxova. Essa é uma que está em processo final de desaparecimento por absoluta falta de vontade dos insulares, ou talvez por medo da polícia. Era algo encantador, que procuro preservar todo dia primeiro de abril, quando lamentavelmente as pessoas não atendem aos meus telefonemas ou não os levam a sério por mais aflito ou desesperado que eu pareça. Não se manda mais despejar caminhão de brita às seis da manhã na porta da garagem do amigo. Não se rouba mais carro alegórico. Não se faz mais pedido falso de caixões a serem entregues na casa de amigo. Não se publicam mais anúncios em nome de amigos agradecendo a médicos proctologistas por bem-sucedidas operações. Não se mede mais a pressão no pescoço de incautos. Não se fazem mais passar por técnicos da telefônica, mandando puxar o fio da parede até arrancá-lo fora. Uma pena pois fazia a cidade muitíssimo divertida.


O apelido. Outra que está menos presente. Esta ilha rivalizava com Nichtheroy na elaboração de grandes e inesquecíveis apelidos: Farol Baixo, Areia Mijada, Zé Cocó, Bafo de Onça, Sovaco de Ouro, Zé Tiroteio, Filtros Europa etc etc etc. Nem morto revelo os alcunhados.


Mestre Álvaro. Quando aqui arribei, ao levantar-me da areia e perscrutar os horizontes logo reparei aquele morro alto que parecia preocupantemente ser um vulcão. Não passava de um inofensivo barômetro natural e infalível do insular, "botava o chapéu" de nuvens quando ia chover. Era tiro e queda. Agora anda esclerosado e usa o chapéu quando não deve.


Depois cá voltarei para acrescentar mais coisas.

quinta-feira, 14 de dezembro de 2006

ApErtamentos


Vinte e tantos anos atrás, o insular desfrutava do prazer de morar em uma casa. Naquele tempo, para seduzir possíveis compradores, os construtores dessas torres de pedra, aço e vidro que transformaram a ilha em um ouriço, eram obrigados a oferecer apartamentos espaçosos. Assim podia-se conciliar o conforto de uma casa com a conveniência de um apartamento.


Com o tempo e à medida que as casas foram sendo substitídas pelas terríveis torres, quase que inverteu-se a situação. Na mesma proporção, reduziu-se a área dos apartamentos. Hoje há muitíssimos insulares engavetados. Engavetados? Sim, pois nada mais adequado do que essa expressão. Uma consulta às folhas de notícias locais e especificamente aos reclames desses construtores apresenta um desenho em perspectiva da torre, geralmente esquecem-se dos postes e transformadores que infestam as ruas, há carros modelo esporte e jovens em profusão e em permanentes férias. Já as plantas são quase que um mistério absoluto e quando são - de péssima vontade - apresentadas, aparecem em escala milimétrica, ou microscópica. Já o que esses senhores chamam de "área de lazer", geralmente constituídas por uma piscina rasa, uma churrasqueira de alvenaria, banhos turcos e pátios e mais pátios e quadras e mais quadras de cimento, recebem um destaque só comparável aos grandes do esporte local. Fico só imaginando quem pagará pela astronômomica manutenção desses verdadeiros principados: provavelmente os generosos construtores já que certamente são brindes. Um estudo à lupa das pouqíssimas plantas disponíveis, por este náufrago que estava habituado a ler plantas navais lá na Escócia, revelou-lhe coisas incríveis. Uma delas se faz pelo método da contagem de lugares: conta-se o número de pessoas que dormem nos croquis das tais plantas. Após, tenta-se colocá-las todas para jantar ou sentar na sala ao mesmo tempo. Pois saibam, caros herdeiros, que dificilmente isso será possível, a menos que adotem o sistema dos grandes navios de servir as refeições em vários serviços. Naturalmente que a recepção de amigos ficará absolutamente prejudicada dentro dos parâmetros normais de privacy preconizando a porta de entrada ficar cerrada. Rumores há de festas que espalharam-se pelos corredores do prédio, escadas e até mesmo elevadores.


Outra coisa bastante interessante é o depósito existente em várias dessas plantas. geralmente próximo às cozinhas. Serão para mercadorias ou vinhos? Em pouca quantidade, acredito, já que seu espaço é bastante reduzido.


Semana passada, por puro esporte, já que meu covil satisfaz tanto a mim quanto ao meu bolso, fui visitar uma meia-dúzia dessas habitações. Pois foi então que descobri a razão da pouca divulgação das blue prints: elas são todas iguais. Como sou pessoa curiosa, armei-me de trena e constatei para meu assombro e desconforto dos simpáticos corretores que alguns dos dormitórios dificilmente comportariam simultaneamente guarda-roupas e camas de tamanho decente a menos que suas portas não se abrissem ou fossem de correr. Ouve-se falar de insulares internados às pressas em hospitais para tratar de ferimentos às mãos. Haviam-nas metido na vidraça da janela, ao espreguiçar-se de manhã. Quando indagados a respeito da economia em tomadas de energia elétrica, contra a quantidade de aparelhos que uma família normalmente tem e o perigo de utilizar-se de adaptadores, esses pobres rapazes não conseguiram articular explicações. Talvez seja alguma instrução dos poderosos da Corte para economia de energia.


Ao visitar as garagens, caríssimos leitores, lembrei-me de minha terra e fascinei-me pela profusão de colunas, idênticas às masmorras que por engano frequentei em Escócia. Os corretores orgulhavam-se ao enfatizar a disponibilidade de uma ou mais vagas para apartamento, mas quando medi-as, ficou claro que esses pequenos caminhões que ora navegam preguiçosamente por nossas avenidas dificilmente caberiam nelas, a menos que fossem serrados ao meio. Eficientes, os profissionais garantiram-me que os regulamentos do condado estavam sendo cumpridos à risca e quanto a isso, quem é este pobre náufrago para contestar o que for? Soube, em baixa voz, que muitas e muitas dessas garagens sofrem por esses veículos invadirem a área de tráfego com sua proa por meia braça mesmo estando a popa encostada à parede do fundo !


A parte dolorosa foi a lista de preços. Meus herdeiros! Por muito menos que isso, em certos países da Europa Oriental, um construtor seria acusado de infâmia e ganância pagã e impalado em execração pública ! São pequenas fortunas que certamente tornam dificílimo comprar-se e viver-se em um apartamento novo simultaneamente pois ou se paga ou se come; sem pensar em coisas tão ridículas quanto móveis ou contas. Se antigos moradores de apartamentos grandes desejarem trocar seu imóvel confortável, porém velho e decadente, por um novo, terão que admitir a mudança para verdadeiras iron maidens tamanho família. Os recém-chegados ao mercado e ávidos pelo bairro da moda não têm escolha. Já os espertos, dispensam o prestígio de bairros nobres, adquirem um belo apartamento antigo na Cidade, reformam-no e ainda sobram bolsas de moedas de ouro para mobiliá-lo extravagantemente.


I'm flabbergasted, dear friends, deeply flabbergasted...

quarta-feira, 13 de dezembro de 2006

Comunicações 2


Alguns de meus amigos autóctones acharam estranha essa minha constatação das comunicações locais serem rápidas. Pois afirmo, leitores, que por muitas vezes comentaram algum feito meu antes de ter acontecido! Mais ainda, comentaram comigo ! By Jove!


Uma personalidade tipicamente insular é o perito em comunicações: só ele, ou ela, sabem da veracidade de tal ou tal informação pois sempre têm fonte segura. Uma ilha minúscula é lugar onde todos se conhecem, então a regra de sete pessoas para chegar a qualquer uma em qualquer lugar do mundo aqui cai para três; às vezes duas. Tanto é que frequentemente recebe-se a mesma história de dois ou três desses peritos ajudando a compor uma verdade.


São pessoas muito interessantes. Existem os que conhecem carros e seus donos pelas respectivas placas de matrícula. Outros são especialistas em determinadas tabernas ou bazares. Outros ainda em praias. Uma grande quantidade, na tal Guarapari. Eficientíssimos todos em detalhar coisas inacreditáveis com uma eficiência de guarda-livros da Coroa.


Aqueles especialistas em veículos sabem onde esses costumam trafegar e quais seus passageiros. Qualquer anomalia nesses padrões desperta um sexto sentido de "aí tem treta".

Os que conhecem a fundo as casas de pasto ficam atentos a quem quer que compareça aos recintos e em companhia de quem. São cérebros privilegiados que tecem associações muito longas remontando a parentescos ou laços de afinidade extremamente remotos.


Já os que fiscalizam bazares atentam para aqueles que estão a comprar o quê e automaticamente calculam se a atividade condiz com a renda do observado.
Quanto aos praianos e de Guarapari, são fiéis consignadores da forma física da população e prestam inestimável serviço de saúde pública denunciando aqueles cuja barriga necessite de uma atenção. Como esse é um assunto delicado, tal informação é passada para terceiros que se encarregarão de fazer chegar anonimamente o resultado do exame ao gordo ou, preferencialmente, gorda.

Naturalmente que os que passam os dias a observar os vizinhos não podem ser esquecidos pois são preciosos na localização de pessoas desaparecidas. Uma pequena consulta a três ou quatro peritos em cada vizinhança supera qualquer busca policial. Logo se localizam as pessoas que se deseja encontrar assim como todos os seus hábitos, qualidades e, sobretudo, defeitos.


Todos eles assumem o sagrado compromisso de reportar, no menor espaço de tempo possível, qualquer comportamento anômalo de seu rebanho em benefício da harmonia da coletividade.


Ao final da semana, contudo, tais informantes descansam e se reúnem em diversas igrejas; praticamente uma para cada indivíduo tantas pululam por aqui. Lá agradecem aos céus a graça de viver em um lugar que permita exercer sua vocação em toda a sua plenitude e secretamente exultam por não cair um raio perdido em suas cabeças.

Comunicações


Vinte e tantos anos atrás, caríssimos leitores, a comunicação daqui mal havia passado da época primitiva: boca a ouvido. Os sistemas modernos feitos pelo intermédio daquela engenhoca presa a fios eram raros e precários.

Atualmente, existe uma quantidade enorme de pequenas máquinas portáteis que a troco de fortunas permitem ao nativo comunicar-se com outro, esteja ele do outro lado do mundo ou apenas cinco passos além, num bazar. Por tradição, foi cuidadosamente preservado o emprego de voz altíssima para tal; o que denota civilização já que os que honram a sua história são pessoas de mérito.

De tal forma a democracia é respeitada nesta ilha que os autócnones, sempre conversando altíssimo, e de asa aberta aos seus portáteis, dividem com seus pares detalhes íntimos como operações de hemorróidas ou processos falimentares. Considero isso um ato de confiança, de gentileza.

São essas pequenas coisas que fazem um náufrago esquecer-se ou consolar-se da distância até seu lar escocês.

Outra marcante atitude do insular é sua sede por informações da comunidade a fim de mantê-la coesa. Pequenos detalhes são sôfregamente divididos com amigos boca a orelha ou portátil a portátil e assim evitam-se desagradabilíssimas gafes ao, encontrando-se com esse ou aquele, estar-se mal informado sobre uma sua separação ou algo parecido. Ficam todos muito a par do que ocorre por todos os lados. Very wise indeed...

terça-feira, 12 de dezembro de 2006

Tempo


Todo súdito da coroa britânica, seja onde for, e nutra a simpatia que nutrir pelos Senhores ingleses acordará todo dia aflito com o tempo. Também dormirá aflito com o tempo e, why not?, almoçará aflito com o tempo. Não digo o tempo dos relógios, já aqui discutido e também obsessivamente observado pelos britâncos e membros da Commonwealth, mas o tempo da janela, lá de fora. A chuva é uma constante nas ilhas e assim seus habitantes andam normalmente armados de guarda-chuvas. A maior vergonha para um britânico é ver-se desprovido de teto ambulante na chuva do dia; algo sumamente vulgar. Quando troquei acidentalmente de ilhas, sem que tal fora um trocad'ilha, imaginei que os locais seriam igualmente estressados pela perspectiva da chuva sem o abrigo portátil apropriado. Notei, todavia, que os isulares de cá pouco se preocupam com o assunto, menos quando se aproximam os fins de semana e a anual peregrinação a Guarapari. Geralmente observam o que diz determinada emissora de sons e imagens, aquela cujo logotipo era um abridor de latas e agora é: ou uma vela (de barco); ou uma palheta de guitarra - ainda não entendi direito - e consideram o oposto: chuva anunciada é tirar os apetrechos de praia do armário e sol anunciado significa providenciar uma 'sombrinha'.

De qualquer maneira a chuva aqui normalmente é econômica e dura meio dia se tanto. Mais do que isso e os infelizes contribuintes constatarão que seus impostos não foram empregados em limpeza de galerias de águas pluviais tampouco na aquisição de capas de chuva para os antipáticos agentes de trânsito municipais. Enquanto isso, na calçada, recebem um caldo dos automóveis de luxo das autoridades, todos com os vidros escurecidos para esconder seus envergonhados ocupantes. Fico imaginando uma monção daquelas, tão comuns nos nossos territórios do Subcontinente por aqui...


Realmente, esta ilha é um lugar onde quando cai uma chuva mais demorada todos se transformam em colegas deste miserável náufrago, encalhados por todos os cantos. Welcome to the club!

sábado, 9 de dezembro de 2006

Guarapari


Estamos a exatos dez dias do início oficial do verão. (Este excêntrico blog estabelece como data da postagem o do primeiro rascunho) Logo depois, o terrível Natal, suas obrigações suarentas e desagradáveis e suas comidas pesadíssimas. Em seguida, o ano novo. Nessa altura o insular começa a portar-se de maneira muito estranha e tal como ave migratória, sai aos bandos rumo sul. Aos milhares desloca-se de uma cidade praiana para outra a fim de veranear. Fato curiosíssimo neste reino: aparentemente umas 30 milhas (ou 50 quilômetros, como é de uso local) fazem enorme diferença para o nativo. Saem de uma praia em que se gasta pouco para outra em que se gastará muitíssimo.

Resolvi estudar o assunto e comparei fotogafias e daguerreótipos antigos com a atualidade, espantando-me com o paraíso que foi sistematicamente destruído com a anuência de burgomestres gananciosos. Fui à tal localidade de Guarapari para assuntar in loco as razões desse comportamento. Alguns anos atrás morria-se tremendamente na péssima estrada que para lá levava e quase sempre tínhamos a lamentar a perda de um ou outro amigo, conhecido e até parentes. Mesmo assim aquilo se repetia ano após ano. Os autóctones enfrentavam aquela rodovia mortal como formigas indo ao açucareiro, em filas indianas catatônicas e ininterruptas. Finalmente construíram uma formidável auto-estrada que agora permite um tráfego veloz e mais seguro embora alguns achem que alcool em excesso não os fará dar cambalhotas com seu veículo. Lá chegando, deparei-me com uma horrenda e desordenada concentração de prédios; multidões - não só dos insulares, como de viandantes longínquos - vagando pelas ruas assim como carros por todos os lados. As praias ficaram com suas areias pretas - certamente em decorrência do pisoteio interminável - e rigorosamente entupidas de gente. Também não vi estações de esgoto e assim fiquei imaginando a composição do caldo onde os febris veranistas banham-se. Um imenso estacionamento de veículos e gente em tal concentração que nem as modernas telecomunicações funcionam. Não se nada, não se senta, se é explorado por vendedores de cerveja quente a peso de ouro, come-se mal e caramente em péssimas casas de pasto após enfrentar filas intermináveis, morre-se de calor e à noite as pessoas forram todos os chãos possíveis de desconfortáveis apartamentos ou casas com colchões de uma polegada e dormem, às dezenas, suando em bicas sob mosquitos vorazes. Na rua, os insones bebem tremendamente e urinam também tremendamente pelos cantos deixando-se tomar por algo dantesco e altíssimo, que insistem em qualificar de música: uns estafermos berrando frases ordinárias de três palavras e várias vogais abertas. Entrudos se formam e nesse ambiente pestilento honras e virgindades desaparecem em meio à ébria curiosidade popular. Ali, na rua, nos automóveis ou até nas árvores, os nativos, tratam de copular furiosamente. Todos eufóricos. Passei sebo nas canelas e voltei cá para meu refúgio que transpirava sossego e conforto.

O que mais me admira é quando finalmente começa o ano - depois do carnaval - essas pessoas voltarão para casa, em nossa ilha, metade maldizendo o lugar: Guarapari está uma bosta" e metade adorando: "Guarapari estava uma maravilha". Todos extremamente queimados de sol e com o fígado, as finanças e as vergonhas aos pandarecos. Todos, gostando ou não da temporada, sonhando com a excursão do ano vindouro. Nesse interregno a tal Guarapari cochilará, desinfetará suas ruas e lamberá suas feridas, com pouquíssimos habitantes numa solidão de mar aberto.

Dia desses observei um grupo de caranguejos deslocar-se numa areia de praia deserta. Iam todos num passo gaguejado numa mesma direção, e lembrei-me dos insulares e sua migração de verão. Talvez o intenso consumo do feio polípodo tenha provocado alguma coisa neles, essa procissão mesmerizada, automática; ou seria então algum período de acasalamento local? Talvez um sabático de freios soltos em lugar longe de casa. Inspirando-me numa expressão dos colonos da América do Norte a respeito de uma de suas estâncias de jogos diria: "O que acontece em Guarapari, fica em Guarapari".

Falando Sério


Falando sério? Será que alguém fala realmente sério neste reino? Outro dia estava a escutar aquele aparelho muito comum por aqui, que verte sons e músicas (?). A folhas tantas um senhor ao apregoar aos berros não sei que mercadoria de que mercador informou ao abismado ouvinte a "hora certa".


Meus queridos herdeiros, após ouvir a tal expressão, pus-me a caminhar pela praia de Camburi até o entardecer. "Hora certa"! O que seria isso já que hora é hora e se existir a certa, existiria a errada? Será que pessoas vis passariam seus dias a divertir-se informando horas erradas à plebe ignara? Caiu a noite e este náufrago tropeçou em algo pertinente às obras de Santa Ingrácia, digo, às obras de urbanização da praia. Manquei até a calçada, praguejando em diversos idiomas e recolhi-me ao meu pobre covil.


No dia seguinte, o pé incomodando-me sobremaneira, dirigi-me a um desses locais públicos em que curandeiros e barbeiros ocupam-se de doentes e acidentados. Lá informaram-me que em um minutinho um cirurgião trataria de meu pobre dedão, cuja unha estava por um fio. Meus herdeiros, pois foi com o estômago a roncar por providências muitas horas depois que percebi terem-nas passado as tais horas e o minutinho local ser talvez mais longo que o dos monges meditativos da Índia! Finalmente fui medicado e, curioso, indaguei das horas. As pessoas presentes, todas muito gentis informaram-me-na ao mesmo tempo: cada um uma hora diferente. Sei bem que era coisa de minutos, mas ninguém estava no mesmo horário. Será que cada relógio seria regulado de maneira diferente? Alguns mais rápidos, outros mais lentos? E a tal da "hora certa" grunhida pelo locutor do aparelho? Seria em vão?


Na esquina mexi os bolsos, achei alguns cobres e adquiri um relógio de pulso a um oriental que não falava uma palava do que fosse.


Na rua reparei que os relógios públicos hoje desaparecidos, aqueles que indicavam tanto a temperatura quanto a hora, estavam todos bastante discordantes entre si. Nenhum deles indicava o que o meu relógio apresentava. É verdade que eles se localizavam em microclimas pois as temperaturas informadas variavam em vários graus também. Isso talvez afetasse seu delicado mecanismo. Mas nem os relógios enormes, no alto de orgulhosos prédios apresentavam horário idêntico ao meu!


Explicado estaria, então caríssimos herdeiros que, por vezes ao convidar amigos para dividir algum vinho e carne em meu humilde covil, alguns não compareçam nem dão satisfações. Talvez estejam perdidos pelos fusos horários.

sexta-feira, 8 de dezembro de 2006

Culinária


O insular é povo cozinheiro. Tanto os homens quanto as mulheres. Cada um tem sua especialidade e adora mostrá-la aos amigos em verdadeiros desafios culinários.


Deve ser por essa razão, caros leitores que vinte e tantos anos atrás, após encalhar na ilha do Socó e empreender idas e vindas à praia para salvar o que pudesse numa cabana que construí, fui em busca de casa de repasto, em um sábado à tarde e nada encontrei. Estava tudo fechadíssimo. Nem uma simples padaria, nem uma taverna daquelas de aguardente e cerveja, com um ovo cozido colorido da semana passada. Zero. Passei fome. Tavernas e casas de repasto fechavam cedo com certeza para que seus proprietários juntassem-se aos que estavam trancados em casa cozinhando. Naquele tempo era quase que exclusivamente a moqueca que dizem os da terra ser exclusivamente capixaba pois o resto é peixada. Feita em antiquíssimas panelas de barro e alguns apetrechos misteriosos onde se ferve o urucum, cuja finalidade é desconhecida pois que insosso.


Na minha santa inocência europeia e sabendo este reino rico em boa carne aventurei-me, de outra feita, em adentrar casas de repasto com apetite para um excelente e vasto bife com fritas. Pois, caros leitores, isso era rigorosamente desconhecido por estas plagas e ainda o é. Vinte e tantos anos atrás, as casas de repasto eram de uma simplicidade franciscana com mesas e cadeiras doadas por mercadores de cerveja. Comia-se a moqueca ou então entregavam-se os autóctones ao tal febril ritual do desmembramento e chupação de caranguejos; algo cuja simples menção me traz à mente relatos sobre o que a inquisição papista andou realizando no pobre continente europeu.


Viviam disso, os nativos: caranguejos, camarões e moquecas. Sanduíches em hipótese alguma pois nem pão de forma encontrava-se que não fosse algo estranho, produzido pela própria padaria.


Os anos foram passando e cá arribando novos náufragos que, aos poucos, conseguiram introduzir novos hábitos culinários. Conseguiram a incrível façanha de convencer os insulares que o peixe poderia ser cortado de outra maneira que não em postas, algo de dificílima compreensão já que o animal era ora fatiado latitudinalmente ora assado inteiro, o pobre infeliz, para nosso deleite. Aprenderam que o peixe tem um filé que, se preparado adequadamente, com manteiga e alcaparras induz uma mansidão das papilas gustativas incomparável.


Minha tristeza, caríssimos, ainda se resume ao bife com fritas que, como já disse, inexiste ainda. Preparam carne de todas as maneiras mas ainda não aprenderam a colocar um belo bife num prato com batatas fritas que não tenham sido congeladas antes. Também devoram-se sanduíches tremendos, vastíssimos, a deixar escorrer coisas diversas pelos lados. Muito superiores aos importados das colônias inglesas do norte que sabem a papelão com pepinos.


Os autóctones agora exibem talentos culinários diversos aos amigos em sua eterna competição. Alguns deles meteram-se até a provar de vinhos e ficam a bochechá-los de modo curiosíssimo ao passo que nós preferimos bebê-los aos goles, clamando por mais; e que encham-me a taça, por favor!


Fiquei faminto...

quinta-feira, 7 de dezembro de 2006

Pequeno dicionário do lusitano insular


Uma das aflições, ou diria eu, gasturas de aqui passar a viver foi, queridos leitores, habituar-me às expressões locais. Uma ou outra foi de fácil assimilação mas fiquei flabbergasted (sinto utilizar-me de expressão bretã intraduzível, mas cuja aparência reflete o sentido) no momento em que o encarregado de uma pequena obra pediu-me para arranjar "lajotas". Como o piso não era de lajotas, fiquei sem saber do quê se tratava, até que descobri serem elas os tijolos vazados!


Para ajudar aos forasteiros, tratei de juntar algumas expressões tipicamente insulares e conto com a ajuda de todos para acrescentar as inúmeras omissões quando me forem enviadas:

Taruíra - Lagartixa
Vasilha - Louça (lavar as vasilhas)
Litro - Garrafa
Pó - Café
Trigo - Farinha de trigo
Pocar - Estourar
Ei - Oi
Iá - Ora vejam só
Lajota - Tijolo
Ponga (em desuso) - Carona
Sombrinha - Guarda-chuva
Mixirica - Tangerina
Gastura - Aflição
Bucha - Esponja
Janta - Jantar
Bandejola - Tabuleiro
Sacola - Algo cuja tradução é sutil. Pode ser uma sacola de supermercado, mas um saquinho de batatas fritas também é "sacola" !
Pif-paf - Brigadeiro (de chocolate)
Gravura - Qualquer imagem, pode ser impressa ou gravada. Até pôster.
Secretária - Empregada doméstrica
Você não quer me levar no cinema não? - Apesar dos dois nãos significa: Me leva ao cinema?

Mais d'antanho




O exdrúxulo título, apesar de sugerir prato italiano, procede. São pequenos detalhes que marcaram este náufrago em suas primeiras expedições exploratórias.
Tanto em Escócia quanto em França ou outros lugares, existe a instituição do endereço: vias recebem nomes ou números e as casas ou prédios são numeradas com ordem pré-estabelecida. Em minhas andanças creio que só vi sistema diferente em Cipango, na cidade de Tóquio, cujo misterioso endereçamento deve ter sido criado para evitar espionagens, tão misteriosos são esses orientais. Outro lugar foi na Venezuela, estranhíssimo lugar, governado por um sargento de exército ou algo semelhante. Lá não existem os números dos imóveis: simplesmente pontos de referência - edifício tal, entre rua tal e avenida tal.
Pois nesta ilha, queridíssimos herdeiros, vinte e tantos anos atrás, a situação era mais misteriosa que Tóquio. Para início de conversa, parecia não serem as vias batizadas. E se o foram, eram referidas pelo nome antigo. Como se não fora suficiente, inexistiam as placas indicando-as ou, solução velhaca, eram afixadas no meio dos quarteirões, economizando-se metade delas, já que seria desnecessário colocá-las em cada esquina ! É possível que ainda existam algumas, sobreviventes à fúria derrubadoura da Praia do Canto. Muito bem. Não se sabendo das vias e avenidas, recorria-se a pontos de referência, mesmo que desaparecidos: rua da Seidel, rua da Bambina, praça do Santa Martha. Coisa para profundos conhecedores da história local. Não satisfeitos, os números das casas, em existindo, eram fruto de sorteio em chapéu, aleatoriamente atribuídos.
Outra indicação de absoluta tranquilidade para o nativo era o nome do edifício e muito se espantava se o forasteiro desconhecesse prédios tão célebres quanto o edifício Jusmar ou o Paulo Ví.
Ultimamente apareceram placas com o nome das ruas em alguns lugares e os números estão um pouco mais visíveis, mas perdura o curiosíssimo costume de solicitar-se um ponto de referência.
Soube de zangados comerciantes face a tal exigência, após informar correta e exaustivamente seu endereço e até seu posicionamento em latitude e longitude, darem como ponto de referência a própria loja, para deleite e alívio do interlocutor.

Pois é, caríssimos. Pior do que isso é um viajante no lugar chamado de Jardim da Penha. Sei de alguns perdidos por lá há anos...

quarta-feira, 6 de dezembro de 2006

Enchendo Lingüiça


E não é que importante diário insular publicou missiva deste náufrago?

Li, com horror, a notícia da criação de uma nova secretaria de obras em nossa cidade. Tal horror não se originou pela inútil criação burocrática pois bastava criar-se uma sub-divisão da atual secretaria. Foi algo mais sutil: nos últimos anos, o burocratês oficial esqueceu-se da palavra "obra" e preferiu substituí-la pelo genérico "intervenção": passaram a ser comuns expressões nauseantes tais como "intervenção semafórica" ao invés de troca ou colocação de placas ou sinais. Li a notícia lentamente, aterrado pela possibilidade da utilização do medonho neologismo. Foi então com alívio que, ao final da leitura, constatei que alguma sensatez prevaleceu e que uma possível e intolerável "Secretaria de Intervenções" não nasceu, mas duvido que tal nome não tenha sido secretamente aventado...

Pois é, caros leitores. Em dias de pouca inspiração, tira-se água de pedras.

Antropofagia bípede


Caros herdeiros. Antes de cá naufragar naveguei por esse mundo afora e testemunhei das coisas mais exóticas, dos mais variados costumes. Vi as mulheres girafas e os faquires; os mandarins e suas tranças e as chinesas com pés minúsculos; vi os pigmeus de África e os gigantes da Terra do Fogo. Também vi na Mandchúria chineses comer cérebros de macacos vivos, até morrerem; comerem serpentes, cães, escorpiões e até gente, em Nova Guiné! Por um triz escapei de ser devorado pelos antropófagos de lá.


Felizmente estas terras não abrigam amantes da antropofagia embora autócnones me tenham assegurado de sua existência séculos atrás, entre os primitivos ocupantes destas plagas.


Cá as pessoas normalmente compram ou pescam seu alimento. Cada vez mais compram já que o mar anda escasseando o bom peixe e os mangues estejam ficando procupantemente desabitados de caranguejos. Aliás, não compartilho do hábito local em deglutir esses polípodos de deslocamento lateral e intermitente que chafurdam no lodo pois me lembra os festins de antropofagia que testemunhei nos antípodas: os pobres crustáceos são fervidos vivos e depois disso esquartejados e destruídos a golpes de pequena borduna. Chupam-se-lhes as poãs e bebem-se-lhes um caldo que esgota das entranhas. Além disso, seu odor lembra o de certas algumas namoradas que tive, pelos portos do mundo.


Nada porém supera o frango antropófago que descobri em grande mercador de comida daqui. Acredito ser ele um frango conhecido e célebre por seu canibalismo pois até pouco tempo atrás sua imagem era estampada nas embalagens de frango assado que o tal lugar vendia. Está ele lá, com garfo e faca, pronto para devorar, com muito gosto, um de seus semelhantes.


Felizmente guardei uma dessas imagens ou ninguém, nem na Capadócia acreditaria em mim!


Censurei o nome do tal mercador pois não estou aqui para fazer propaganda de ninguém!

terça-feira, 5 de dezembro de 2006

Arranha-céus


Foi-se o tempo, caríssimos leitores, em que gozava-se da generosa brisa desta ilha. Era uma delícia absoluta, pelo menos para mim. Quanto aos nativos, talvez sejam eles de origem gaulesa pois parecem ter horror aos courants d'air - correntes de ar. Ora, jamais soube de vento ser maléfico pois se tal o fora e não se navegaria. Estranhos e enclausurados gauleses. Mas voltemos aos insulares e seus hábitos esquisitos. Estão a paliçar o entorno da ilha, caríssimos! Erguem contrafortes, torres e ameias contra inimigo inexistente a não ser o vento ora nordeste ora sul. São arranha céus terríveis e ameaçadores que acabam com a circulação de ar no povoamento. Só posso imaginar que o inimigo em questão seja o pó de minério contido no vento que as usinas de Ponta de Tubarão generosa e abundamente distribuem por via aérea aos autócnones. São toneladas e mais toneladas numa rara demonstração de ininterrupto desprendimento. No entanto, são os da vanguarda contra o vento dominante que recebem o maior quinhão desse precioso pó negro. Conhecidos habitando a jusante do vento nordeste mostraram-me pás do minério colhidas em suas varandas em uma só manhã. Isso é profundamente injusto e acho que cabe reclamação às boníssimas usinas a fim de que providenciem uma distribuição mais eficiente de seu ferro em pó para aqueles que foram prejudicados.


Muito aflita confessava velha amiga ao sentir-se cada vez mais cercada em seu refúgio outrora dotado de infinita vista e infinitos ares e insolação em perder dia após dia seu parco acesso ao ar e à beleza do lugar. Seu calvário se dá às pancadas das citadas paliçadas preliminares a serem cravadas ao chão, o que a priva de recolhimento e tranquilidade. Sei de determinado canto, imaginem vocês, caros leitores, bem ali perto de onde lamenta seu pobre destino essa queridíssima amiga, onde belas residências poucos anos atrás encarapitavam-se gloriosa e orgulhosamente em morro à beira-mar. Pois não é que solertes burgomestres aterraram o mar e trataram autorizar o cercamento do pobre morro por essas muralhas de tijolos? Quase todos tiveram de levantar acampamento e os que teimosamente permaneceram sofrem a claustrofobia dos injustiçados.


Estranho lugar, onde célebre construtora orgulhosamente ostenta nome e retrato de grande erro de engenharia italiano - a Torre de Pisa!


segunda-feira, 4 de dezembro de 2006

Quase verão




Neste exato instante, meus queridos herdeiros de pensamentos e lembranças, meus parentes lá na distante Escócia tiritam de frio. Um clima cruel, que não admite deslizes: quem não trabalha o ano inteiro, não compra lenha ou carvão para os meses de inverno e sem aquecimento o sono por vezes é para sempre.

Cá neste abençoado canto tropical isso não existe, apesar de no fraquíssimo inverno daqui volta e meia toparmos com autóctones encasacados além do razoável. Todos perfumados a naftalina...

Pois é, vivemos aqui sob clima ameno, mas os insulares guardam no fundo de seus cérebros as lembranças dos inclementes invernos europeus - da Europa setentrional - e promovem inquietante conservação de calor. Explico-me:

Quando naveguei pelas águas tépidas do Mediterrâneo, do Golfo Pérsico, do Mar Vermelho, as habitações das vilas e cidades costeiras eram, sem exceção brancas como a neve. Isso fazia com que o sol refletisse sobre as brancas empenas salvaguardando uma temperatura menos tórrida no interior das casas. Nesse lugares de calor inclemente, uma benção já que os nativos desidratar-se-íam com rapidez; e em terra de pouca água tal perspectiva é inquietante.


Nesta ilha, contudo, proliferam prédios e casas pintados de marrom, cinza escuro, roxo e até mesmo preto. Raríssimas são as construções brancas. Antigamente julgava ser essa uma imposição do burgomestre mas depois passei a suspeitar haver algum arranjo para se que vendam mais aparelhos de climatização já que fachadas escuras expostas ao sol da tarde revelam-se excelentes conservadoras de calor, o qual irradiando-se para os aposentos internos transforma-os em saunas melhores que as que visitei em terra viquingue. Dessa maneira o clima ameno é artificialmente transformado em sufocante.

Espantoso, caríssimos, espantoso...

Companheiros de batalha


Aventurei-me, após sobreviver ao Centro Comercial e seu peculiar horário, em que lojas abrem a seu bel-prazer, em viajar a município fronteiro e aproveitei a jornada para anotar hábitos dos que cá trafegam.

Os insulares, de há muito habituaram-se ao pandemônio causado pela conjunção de excesso de veículos e excesso de semáforos e escassez de vias da ilha. Atualmente, qualquer percurso deve ser elaborado com muita antecedência ou o pobre cocheiro passará por momentos frustrantes e infelizes.

Já reparei, caros herdeiros, que os chamados automóveis desta ilha são todos sinalizados e têm na tal sinalização a atribuição de seu domicílio. Os de cá, são os de Vitória, que - bem ou mal - conseguem alguma desenvoltura a menos que sejam novatos quando então confinam-se na faixa de baixa velocidade - a da esquerda. Outros vêm do continente ou algures. São eles:

Em grande quantidade e demonstrando completa confusão, os de Vila Velha, exótico lugar do outro lado da baía deste belo canto do mundo. Lá deve imperar o código bretão pois sem exceção alguma trafegam lentissimamente pelo lado esquerdo das avenidas. A menos que sejam todos novatos, já que demonstram infinita dificuldade em estacionar satisfatoriamente e refugiam-se em áreas de sombra da avenida por vezes a cem metros de um semáforo vermelho, sem que haja qualquer veículo à sua frente.
De certa feita, em remota excursão àquele sítio, quase que colidi com um desses autóctones que havia imobilizado seu veículo à distância exata de um quarteirão do semáforo vermelho lá à frente.

Em menor quantidade e demonstrando amor por veículos de colecionador, verdadeiras antiguidades, mas cuidadosamente decoradas a fim de parecerem mais recentes, estão os da Serra. São cocheiros que muito prezam ostentar semblante de poucos amigos, como a avisar que estejam de posse de armas de fogo, prontas a serem postas em ação. Deslocam-se a velocidades incríveis. Nos fins de semana, põem os veículos a descansar perto das praias, com portas abertas e gramofones a bordo, tocando músicas rituais em volume altíssimo. Algo sumamente espantoso e não há guarda que os prenda ou multe pelo desacato ao sossego público.

Em menor quantidade ainda, os do local curiosamente denominado Cariacica. Geralmente veículos mais antigos ainda, como Volkswagens, o que me leva a crer existir grandes revendedores da marca naquele local. Deve ser terra montanhosa, já que seus cocheiros apreciam o ziguezaguear.

Por último, os de Viana. Em tão pouco número que ainda não consegui discernir qualquer característica.
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Trafegar nesta ilha é de tal modo insólito que voltarei por diversas vezes ao tema.

domingo, 3 de dezembro de 2006

Nova semana, a primeira de dezembro


Na minha amada Escócia, natal era uma época bonita, de recolhimento familiar, perspectiva de uma boa ceia e, no meu caso, boa bebida. Faz frio lá, frio úmido. Reunimo-nos à volta do fogo e deixamos correr a noite. Lá fora o silêncio da neve que absorve qualquer ruído da noite.

Nesta ilha, meus caros herdeiros, natal é motivo de barulho feroz e incessante onde quer que se vá. Multidões tremendas vagando por corredores e mais corredores dos centros comerciais, em baixíssima velocidade e em grupo. A passagem de um aflito náufrago em demanda de uma compra banal é feita à custa de gradesíssimo sacrifício e o ziguezaguear constante aumenta desmesuradamente qualquer percurso. Naveguei, caros leitores, pelos sete mares e mais alguns oceanos e nunca tufão ou furacão exauriu-me mais que essa febre aqui encontrada.

O barulho, leitores, o barulho! Comparável ao de terremotos, uma coisa surda, tremenda. Não fora suficiente e parece que os odiosos arquitetos que desenharam esses infernos em Terra esforçaram-se em usar e abusar de superfícies refletivas de ruído, que assim amplifica-se, reverbera e espalha-se sem dó nem piedade.

Até nas ruas a coisa é esmagadora. Acontece de encaminharem para engenhos pendurados aos postes medonhas melodias incessantemente repetidas, interpretadas por harpas. Houve ocasiões em que sonhava em colocar o demônio intérprete dessas músicas sobre o seu maldito instrumento e assá-lo ao fogo ou fatiá-lo tal qual ovo cozido.

O pior não é isso, leitor. Nesse clima paradisíaco em, que ninguém morre de frio, insulares insistem numa nostalgia inacreditável de flocos de neve e provavelmente esgotam os estoques de algodão dos hospitais - tão necessitados dele para seus pacientes - e pespegam-no de séca em meca, num furor doentio. Pobres infelizes trajados de lã vermelha, barbas brancas e gorros quentíssimos são obrigados a refestelarem-se em tronos toscamente elaborados e completamente infelizes e suarentos forçados a acolher levas e mais levas de irriquietas crianças nativas. Acredito que sejam aqueles normalmente seriam condenados às galés ou ao desterro mas que receberam excepcionalmente dos juízes pena mais pesada por crime por demais hediondo.

Amanhã de manhã deverei ir resgatar um pedido em mercador ilhado em um centro comercial. Já separei para a expedição um bom arco, flechas assim como dois mosquetões carregados. Também está lá a minha espada, afiada. Mantimentos! Claro. Peixe salgado e seco e frutas; e água. Desejem-me sorte!

É apenas a primeira semana de dezembro!

E domingo é hoje.


Caríssimos leitores. Domingo para este pobre náufrago é dia duplamente infeliz pois tenho eu que escapar das lamentações de minha mulher, ávida por meter-se nas multidões dos centros comerciais e, por minha vez, lamentar a inacessibilidade de casas de pasto igualmente lotadas.

A ilha está imunda por obra e graça dos céus, sobretudo São Pedro, que passou dos limites, e das autoridades nativas, avessas à higiene pública. Tais autoridades são de uma estultície eterna no uso de qualquer língua em qualquer lugar do nosso globo. Aqui mesmo, uns anos atrás, uma delas saiu-se com uma que deixou este náufrago desejoso de conseguir nadar por horas a fio a fim de por-se ao largo de maneira definitiva.

Antes de mais nada, perguntaria a meus queridos e hipotéticos leitores acerca da possibilidade de banharem-se em piscina ou tanque onde flutuasse preguiçosa e mal-cheirosamente um belo troço de matéria fecal. Cem por cento de meus leitores com certeza recusar-se-iam a sequer cogitar de imersão em tão duvidoso banho. Vamos imaginar agora que tal troço fora diminuido de metade, ou dois terços, ou três quartos ou sete oitavos e meus higiênicos leitores continuariam irredutíveis em admitir o banho. Não se banha em água suja, seja ela qual for. Pois então estupefato ficou este náufrago ao deparar-se com uma gigantesca placa afixada anos atrás pela administração do insular Albuíno em final da chamada praia de Camburi que exibia orgulhosamente lá serem feitas obras de "Despoluição Parcial" da citada estância praiana.
Um espanto absoluto, caríssimos...

sábado, 2 de dezembro de 2006

Domingo


Domingo, quase. Antes que me perguntem, não existe sexta-feira na minha vida. Existe é uma pobre senhora que me atura de domingo a domingo.
Exatamente neste domingo cedo, iremos fazer uma maratona de hospitais já que ela é médica e precisa checar se seus pacientes ainda respiram. Seguiremos de automóvel nessas avenidas que têm uma estranhíssima sinalização. Explico-me.
Aqui perto de casa há uma dessas avenidas, portentosa, arborizada e permanentemente ocupada por veículos absolutamente diversos. Há porém uma curiosidade nela que é coisa talvez virótica na sinalização horizontal insular. Sabem desenho animado? Aquela história de um do la si já? e o bonequinho dá um passo atrás antes de correr ou mergulhar? Pois é isso. Ao seguir por uma avenida reta, ao desejarmos virar à esquerda, somos saudados por uma marcação à tinta no chão para que nos desloquemos para a direita, para depois voltar à esquerda. Algo espantoso e que só existe aqui. Fico achando que algum nativo pintou esse tipo de sinalização sob efeito de alcalóides nalgum canto, aquilo ficou e depois passaram a imitá-lo sem saber a razão ou temerosos de errar ou transgredir algum dos milhares de regulamentos que pululam tal piolhos nas cabeças burocráticas. Lembra-me também algo ocorrido mais ou menos um ano após a Ampex lançar o primeiro aparelho de video-tape: apareceu um clone japonês rigorosamente idêntico. Tão idêntico que até erros de usinagem no gabinete, tais como orifícios inúteis foram cuidadosamente copiados.
Essa coisa de imitar os outros é comum na língua lusitana. O primeiro a dizer "TV a cores" foi imitado por coortes por décadas a fio e ocasionalmente ainda o é por saudoso e distraído nativo. O primeiro ao delirar que preço fora algo como violão e que dessa sorte fora praticado também tornou-se messias e passou a ser imitadíssimo.
Curiosa terra. Ando necessitado de uma boa garrafa de minha saudosa e distante Escócia...

Logo depois


Foi grande a aflição, queridíssimos leitores, ao tentar atravessar uma rua pela primeira vez. Foi ali na Desembargador Santos Neves da época que, de tão tranqüila, a prefeitura abandonava caçambas de lixo nos retornos a fim de juntar ratos e baratas que de outro modo infestariam esgotos. Eventualmente era depositado lixo ali e mais eventualmente ainda esse lixo era colhido.

Pois fui atravessar exatamente na altura de um desses retornos e ali dei-me conta de uma particularidade local que perde-se com velocidade: a mudança sutil e localizada da mão de direção. Uma dessas leis não escritas, mas cumpridas à risca pelos nativos. Dirige-se pela direita como em todo o território nacional exceto nos retornos. Ali imperava a mão inglesa! Olhando para o lado direito, quase fui atropelado por ágil Kombi cujo motorista, ao trafegar à bretã, ainda tratou de tentar educar-me: "tá doido?". E foi minha segunda revelação !
A Kombi pertencia à ainda existente, graças aos céus, Sociedade de Assistência à Velhice Desamparada. Seria esse um oxímoro, um paradoxo ou um sintoma?
A tal sociedade ainda existe e suas Kombis andam para cima e para baixo naquela aflição de não perderem tempo ou mais e mais velhinhos serão desamparados a qualquer momento: os tais velhinhos que mesmo sendo assistidos pela tal Sociedade teimosamente continuam a dizerem-se desamparados, os ingratos!
Deitei ao mar garrafas e garrafas com mensagens não de socorro pois este náufrago aqui vive muito bem, mas com apelos à constatação a ímpar associação de conceitos vicejando tão e somente nesta ilha!

História antiga


Pois foi, caros leitores, há muitos e muitos anos - provavelmente antes de meu naufrágio - em viagem exploratória, que tive meu primeiro contato com a personalidade insular. Foi ao apreciar a grande placa em imóvel outrora fronteiro à praia do Canto: "Sede da Cruz Vermelha". Ora bolas. Para que diabos o "Sede"? Não bastaria "Cruz Vermelha"? Ou será que haveria um ritual misterioso, secreto que obrigasse a identificação indubitável de sede e filais? Pois saí à caça da "Filial da Cruz Vermelha" que poderia estar tanto nas imediações da poderosa sede quanto do outro lado da ilha. Jamais foi encontrada.
Isso me tirou o sono por anos a fio, até que arrancaram a tal placa. Tenho saudades. Será que está guardada em algum lugar? Merece estar em museu.

Intervalo


Será que no início é assim? Estou louco para escrever mais uma besteira qualquer. Dane-se...

Meu último passeio




Mais tarde passarei para vocês lembranças mais antigas já que é coisa de velho guardar memórias longínquas e esquecer-se das recentes. Pois saibam, herdeiros de minhas observações, que hoje vi uma "School of Commerce", assim mesmo, em bretão. Fico fascinado pela desenvoltura com que os autóctones navegam em minha língua materna e por vezes desconfio ser essa a verdadeira língua do lugar. Claro que volta e meia falham em certas sutilezas, como o emprego da apóstrofe, mas isso até aqueles selvagens das colônias do Novo Mundo o fazem.
Mas voltemos à "School of Commerce", ou escola de comércio. Seria a arte de comerciar aquela de encrencar-se? Como passei quase duas décadas envolvido na tal lamentável atividade - e, sem dúvida, encrenquei-me - acho que sim. A tal escola chama-se Fucape. Pois, se assumirmos que o idioma dominante do local seja o bretão, tal nome soa como "fuck-up" cuja tradução em lusitano seria por demais ignóbil para constar de minhas pobres páginas, nestes raros papéis que consegui salvar no meu naufrágio.
Surrealismo ou inconsciente? Ou será que essas duas coisas na realidade (!!) não sejam mais do que uma só?
Depois volto.

Perdido na ilha há 23 anos


Fazem 23 - ou seriam 24 - anos que vim dar c'os costados a esta estranha ilha. Muito estranha mesmo, paradoxal, surrealista... Tentarei lembrar do que aconteceu, do que vi de inusitado. Será minha herança.