domingo, 25 de abril de 2010

Pulei um dia


Ora, ora, meus herdeiros. Cá não vim hontem (prefiro escrever essa palavra à moda de setenta anos atrás). Nada havia a consignar. Ao invés, dediquei meu dia ao ócio quase ininterrupto. Minto. Traduzi umas páginas do idioma franco para o nacional.

Prezadíssimos! Como é divertido escrever! Só não o é quando rompe-me a pena, falta caldo de urucum ou estou simplesmente afastado de meus instrumentos de escrita. Nessa hipótese acontece de as idéias quase que transbordarem de minha cabeça, sem haver lugar seguro para repousá-las. Não pode ser em qualquer sítio, como em cima da mesa de jantar: tem que ser neste pergaminho barato cujas resmas o patife mercador me vende em troca de uma peça de oito. Deixá-las por aí é perigoso pois elas são extremamente sensíveis e basta uma distração que são carregadas pelo vento. Carregadas, elas não voltam mais. Conquistam liberdade e voam para a Terra das Idéias Nunca Escritas. Livros e mais livros tiveram esse destino. Personagens e mais personagens, alguns deles interessantíssimos, não conseguiram existir.

Outras saem relutantemente de minha cabeça, como esta. Sentei-me para escrever logo após acordar de meus complicadíssimos sonhos e nada me ocorria, como sempre acontece, nesse período de duas horas que levo até voltar a ser Homem Acordado. Essas devem quase que ser caçadas, ou pescadas com arpão. Talvez seja essa a melhor definição: debatem-se à ponta da haste de ferro, lutando para serem deixadas em paz até serem vencidas, subjugadas e transformadas em letras legíveis por todos. Tal metamorfose é fascinante: aquela nuvem a que chamamos de idéia, tão carente de aspecto definido, perde sua liberdade e é derretida no papel. Ali ela é trabalhada - às vezes muito - até ser entregue aos leitores. Mesmo assim pode ser que algumas de suas outrora vivas carnes ainda sofram de certos espasmos e devam ser imobilizadas. Isso me lembra a saborosíssima carne de tartaruga que provei nas terras amazônicas. Horas depois de o bicho ter falecido para nosso augusto proveito, suas carnes aqui e ali tremiam, como que indignadas pelo fim prematuro de suas normalmente longas vidas ou aterradas pela perspectiva da cocção. As minhas idéias antigas, agora já domadas e lançadas ao papel, vez por outra recebem minha visita e um olhar novo, mais inquisitivo, atento a algum sinal de independência. Quase sempre o encontro, num pequeno tremor, qual o da carne do quelônio. Aí reescrevo, trocando pontuação, suprimindo excessos. Isso me leva a crer - e estou pensando junto com vocês, meus caros leitores - que na realidade essas idéias nunca param de tentar voar. De sua maneira elas sempre pedem atenção, um pouquinho de amor, como todos nós.

O sol vai alto, caríssimos, mesmo que oculto por trás de brancas nuvens a poupar-nos da total incidência de seus quentíssimos raios. Sei que em breve minha augustíssima senhora choramingará de suas entranhas estarem a clamar por alimentação farta e imediata. Devo então buscar outro tipo de inspiração que o da escrita: o da culinária. Se me permitirem a infâmia, diria: essa é sopa!

Talvez volte para cá...