
Estamos a exatos dez dias do início oficial do verão. (Este excêntrico blog estabelece como data da postagem o do primeiro rascunho) Logo depois, o terrível Natal, suas obrigações suarentas e desagradáveis e suas comidas pesadíssimas. Em seguida, o ano novo. Nessa altura o insular começa a portar-se de maneira muito estranha e tal como ave migratória, sai aos bandos rumo sul. Aos milhares desloca-se de uma cidade praiana para outra a fim de veranear. Fato curiosíssimo neste reino: aparentemente umas 30 milhas (ou 50 quilômetros, como é de uso local) fazem enorme diferença para o nativo. Saem de uma praia em que se gasta pouco para outra em que se gastará muitíssimo.
Resolvi estudar o assunto e comparei fotogafias e daguerreótipos antigos com a atualidade, espantando-me com o paraíso que foi sistematicamente destruído com a anuência de burgomestres gananciosos. Fui à tal localidade de Guarapari para assuntar in loco as razões desse comportamento. Alguns anos atrás morria-se tremendamente na péssima estrada que para lá levava e quase sempre tínhamos a lamentar a perda de um ou outro amigo, conhecido e até parentes. Mesmo assim aquilo se repetia ano após ano. Os autóctones enfrentavam aquela rodovia mortal como formigas indo ao açucareiro, em filas indianas catatônicas e ininterruptas. Finalmente construíram uma formidável auto-estrada que agora permite um tráfego veloz e mais seguro embora alguns achem que alcool em excesso não os fará dar cambalhotas com seu veículo. Lá chegando, deparei-me com uma horrenda e desordenada concentração de prédios; multidões - não só dos insulares, como de viandantes longínquos - vagando pelas ruas assim como carros por todos os lados. As praias ficaram com suas areias pretas - certamente em decorrência do pisoteio interminável - e rigorosamente entupidas de gente. Também não vi estações de esgoto e assim fiquei imaginando a composição do caldo onde os febris veranistas banham-se. Um imenso estacionamento de veículos e gente em tal concentração que nem as modernas telecomunicações funcionam. Não se nada, não se senta, se é explorado por vendedores de cerveja quente a peso de ouro, come-se mal e caramente em péssimas casas de pasto após enfrentar filas intermináveis, morre-se de calor e à noite as pessoas forram todos os chãos possíveis de desconfortáveis apartamentos ou casas com colchões de uma polegada e dormem, às dezenas, suando em bicas sob mosquitos vorazes. Na rua, os insones bebem tremendamente e urinam também tremendamente pelos cantos deixando-se tomar por algo dantesco e altíssimo, que insistem em qualificar de música: uns estafermos berrando frases ordinárias de três palavras e várias vogais abertas. Entrudos se formam e nesse ambiente pestilento honras e virgindades desaparecem em meio à ébria curiosidade popular. Ali, na rua, nos automóveis ou até nas árvores, os nativos, tratam de copular furiosamente. Todos eufóricos. Passei sebo nas canelas e voltei cá para meu refúgio que transpirava sossego e conforto.
O que mais me admira é quando finalmente começa o ano - depois do carnaval - essas pessoas voltarão para casa, em nossa ilha, metade maldizendo o lugar: Guarapari está uma bosta" e metade adorando: "Guarapari estava uma maravilha". Todos extremamente queimados de sol e com o fígado, as finanças e as vergonhas aos pandarecos. Todos, gostando ou não da temporada, sonhando com a excursão do ano vindouro. Nesse interregno a tal Guarapari cochilará, desinfetará suas ruas e lamberá suas feridas, com pouquíssimos habitantes numa solidão de mar aberto.
Dia desses observei um grupo de caranguejos deslocar-se numa areia de praia deserta. Iam todos num passo gaguejado numa mesma direção, e lembrei-me dos insulares e sua migração de verão. Talvez o intenso consumo do feio polípodo tenha provocado alguma coisa neles, essa procissão mesmerizada, automática; ou seria então algum período de acasalamento local? Talvez um sabático de freios soltos em lugar longe de casa. Inspirando-me numa expressão dos colonos da América do Norte a respeito de uma de suas estâncias de jogos diria: "O que acontece em Guarapari, fica em Guarapari".