sábado, 9 de dezembro de 2006

Guarapari


Estamos a exatos dez dias do início oficial do verão. (Este excêntrico blog estabelece como data da postagem o do primeiro rascunho) Logo depois, o terrível Natal, suas obrigações suarentas e desagradáveis e suas comidas pesadíssimas. Em seguida, o ano novo. Nessa altura o insular começa a portar-se de maneira muito estranha e tal como ave migratória, sai aos bandos rumo sul. Aos milhares desloca-se de uma cidade praiana para outra a fim de veranear. Fato curiosíssimo neste reino: aparentemente umas 30 milhas (ou 50 quilômetros, como é de uso local) fazem enorme diferença para o nativo. Saem de uma praia em que se gasta pouco para outra em que se gastará muitíssimo.

Resolvi estudar o assunto e comparei fotogafias e daguerreótipos antigos com a atualidade, espantando-me com o paraíso que foi sistematicamente destruído com a anuência de burgomestres gananciosos. Fui à tal localidade de Guarapari para assuntar in loco as razões desse comportamento. Alguns anos atrás morria-se tremendamente na péssima estrada que para lá levava e quase sempre tínhamos a lamentar a perda de um ou outro amigo, conhecido e até parentes. Mesmo assim aquilo se repetia ano após ano. Os autóctones enfrentavam aquela rodovia mortal como formigas indo ao açucareiro, em filas indianas catatônicas e ininterruptas. Finalmente construíram uma formidável auto-estrada que agora permite um tráfego veloz e mais seguro embora alguns achem que alcool em excesso não os fará dar cambalhotas com seu veículo. Lá chegando, deparei-me com uma horrenda e desordenada concentração de prédios; multidões - não só dos insulares, como de viandantes longínquos - vagando pelas ruas assim como carros por todos os lados. As praias ficaram com suas areias pretas - certamente em decorrência do pisoteio interminável - e rigorosamente entupidas de gente. Também não vi estações de esgoto e assim fiquei imaginando a composição do caldo onde os febris veranistas banham-se. Um imenso estacionamento de veículos e gente em tal concentração que nem as modernas telecomunicações funcionam. Não se nada, não se senta, se é explorado por vendedores de cerveja quente a peso de ouro, come-se mal e caramente em péssimas casas de pasto após enfrentar filas intermináveis, morre-se de calor e à noite as pessoas forram todos os chãos possíveis de desconfortáveis apartamentos ou casas com colchões de uma polegada e dormem, às dezenas, suando em bicas sob mosquitos vorazes. Na rua, os insones bebem tremendamente e urinam também tremendamente pelos cantos deixando-se tomar por algo dantesco e altíssimo, que insistem em qualificar de música: uns estafermos berrando frases ordinárias de três palavras e várias vogais abertas. Entrudos se formam e nesse ambiente pestilento honras e virgindades desaparecem em meio à ébria curiosidade popular. Ali, na rua, nos automóveis ou até nas árvores, os nativos, tratam de copular furiosamente. Todos eufóricos. Passei sebo nas canelas e voltei cá para meu refúgio que transpirava sossego e conforto.

O que mais me admira é quando finalmente começa o ano - depois do carnaval - essas pessoas voltarão para casa, em nossa ilha, metade maldizendo o lugar: Guarapari está uma bosta" e metade adorando: "Guarapari estava uma maravilha". Todos extremamente queimados de sol e com o fígado, as finanças e as vergonhas aos pandarecos. Todos, gostando ou não da temporada, sonhando com a excursão do ano vindouro. Nesse interregno a tal Guarapari cochilará, desinfetará suas ruas e lamberá suas feridas, com pouquíssimos habitantes numa solidão de mar aberto.

Dia desses observei um grupo de caranguejos deslocar-se numa areia de praia deserta. Iam todos num passo gaguejado numa mesma direção, e lembrei-me dos insulares e sua migração de verão. Talvez o intenso consumo do feio polípodo tenha provocado alguma coisa neles, essa procissão mesmerizada, automática; ou seria então algum período de acasalamento local? Talvez um sabático de freios soltos em lugar longe de casa. Inspirando-me numa expressão dos colonos da América do Norte a respeito de uma de suas estâncias de jogos diria: "O que acontece em Guarapari, fica em Guarapari".

Falando Sério


Falando sério? Será que alguém fala realmente sério neste reino? Outro dia estava a escutar aquele aparelho muito comum por aqui, que verte sons e músicas (?). A folhas tantas um senhor ao apregoar aos berros não sei que mercadoria de que mercador informou ao abismado ouvinte a "hora certa".


Meus queridos herdeiros, após ouvir a tal expressão, pus-me a caminhar pela praia de Camburi até o entardecer. "Hora certa"! O que seria isso já que hora é hora e se existir a certa, existiria a errada? Será que pessoas vis passariam seus dias a divertir-se informando horas erradas à plebe ignara? Caiu a noite e este náufrago tropeçou em algo pertinente às obras de Santa Ingrácia, digo, às obras de urbanização da praia. Manquei até a calçada, praguejando em diversos idiomas e recolhi-me ao meu pobre covil.


No dia seguinte, o pé incomodando-me sobremaneira, dirigi-me a um desses locais públicos em que curandeiros e barbeiros ocupam-se de doentes e acidentados. Lá informaram-me que em um minutinho um cirurgião trataria de meu pobre dedão, cuja unha estava por um fio. Meus herdeiros, pois foi com o estômago a roncar por providências muitas horas depois que percebi terem-nas passado as tais horas e o minutinho local ser talvez mais longo que o dos monges meditativos da Índia! Finalmente fui medicado e, curioso, indaguei das horas. As pessoas presentes, todas muito gentis informaram-me-na ao mesmo tempo: cada um uma hora diferente. Sei bem que era coisa de minutos, mas ninguém estava no mesmo horário. Será que cada relógio seria regulado de maneira diferente? Alguns mais rápidos, outros mais lentos? E a tal da "hora certa" grunhida pelo locutor do aparelho? Seria em vão?


Na esquina mexi os bolsos, achei alguns cobres e adquiri um relógio de pulso a um oriental que não falava uma palava do que fosse.


Na rua reparei que os relógios públicos hoje desaparecidos, aqueles que indicavam tanto a temperatura quanto a hora, estavam todos bastante discordantes entre si. Nenhum deles indicava o que o meu relógio apresentava. É verdade que eles se localizavam em microclimas pois as temperaturas informadas variavam em vários graus também. Isso talvez afetasse seu delicado mecanismo. Mas nem os relógios enormes, no alto de orgulhosos prédios apresentavam horário idêntico ao meu!


Explicado estaria, então caríssimos herdeiros que, por vezes ao convidar amigos para dividir algum vinho e carne em meu humilde covil, alguns não compareçam nem dão satisfações. Talvez estejam perdidos pelos fusos horários.