quarta-feira, 21 de abril de 2010

Tiradentes


Hoje é dia de folguedo. Homenageia-se um bravo militar, arrancador de dentes de ofício e alferes de patente que pensou em expulsar daqui os vilões de Europa. Deu-se mal, o infeliz, e acabou enforcado, esquartejado e posteriormente retratado com aparência idêntica ao Nosso Senhor Jesus Cristo. Visitei museus da antiga capital Real e lá constatei a notável semelhança. Dir-se-iam gêmeos.


Ao voltar para meu aconchego, pus-me a refletir sobre a imaginação artística e, com meus botões a exigir algum sentido, ou para piorar a situação, ocorreu-me que inexistia a pintura artística como a conhecemos na época do Messias. Sua imagem então não passava de invenção da fértil cabeça dos retratistas. Já na época de Joaquim José - nome do tal herói - já existiam. Sua semelhança então seria coincidente ou proposital. Perdido em dúvidas, acabei por adormecer, sonhando com meus tempos de militar, em Inglaterra.


Acordei suado (era Inferno ainda) lembrando-me com que insistência, em tempos militares, meus superiores exigiam cabelos de tamanho razoável. Para tal há várias razões, sendo que a mais evidente seria proporcionar uma aparência de limpeza e disciplina aos soldados. Outra hipótese seria que cabelos longos atrapalhariam na hora de mirar o mosquetão. A derradeira, e mais plausível, seria de deixar menos espaço para a incômoda companhia de piolhos e outros insetos, eternos confidentes dos soldados.


Isso, entretanto não satisfez a coceira instalada em minha mente e depois de muito pensar, lembrei-me que na pintura que mais me impressionou, jazia o sonhador Alferes já devidamente enforcado e partido em pedaços com cabelos e barba compridos. Homessa! A muitos enforcamentos compareci e em todos o condenado estava absolutamente tosado. Cabelos e barbas atrapalham o correto posicionamento da corda. Enforcar também é arte.


A essas alturas dei-me conta de haver-me levantado de meu escarrapacho às areias da praia e -posto a caminhar imerso em considerações - estava a milhas do ponto de partida, o sol se fazia baixo nas areias de Cambury e sentia-me sedento e faminto. Sou por natureza um pouco distraído.


Voltando então à imagem divina supliciada, entendi a profunda política que envolve um herói da pátria. A ordem é transformá-lo em Deus merecendo ou não. Mesmo assim, o Senhor tem seus 52 domingos por ano enquanto que ao dentista coube um único feriado. Seria isso justo em um lugar onde dizem que igreja e estado são separados? Aí veio a meu espírito a força da tradição e contentei minha velha iconoclastia, forjada na constatação do cinismo humano.


Pensei então em todos os heróis que conhecia e em todos percebi que a arte e a história lhes havia coberto de divindade. Uma francesa, que nunca chegou perto de fogueira, teria morrido queimada, apesar de certos relatos a apresentarem terminando seus dias velha, realizada e cercada de filhos no conforto de um bom lar. Essa francesa, acreditem, virou santa! Diplomada pelo Vaticano, impaciente em boas relações com a França após os estremecimentos da Revolução e de Monsieur Bonaparte... Outro, famoso rei, teria declarado a independência de seu país em meio a diarréias provocadas por aguda bebedeira, às magens de um riacho onde se lavaria após as longas peristalses ao invés de heróico brado retumbante de grandeza. Outro...


Os políticos são terríveis. Aterradores são os subterfúgios de que se valem esses cavalheiros para que acreditemos no que querem. Moldam a História e criam mentiras para que a gentalha faça um juízo melhor dos lugares onde mandam, onde a realidade é a rotineira dos dias-a-dias de sempre e cujos heróis foram pouca coisa além de cidadãos como nós. Desfrutemos então do único feriado deste lugar que seja dedicado a um homem como nós, sonhador e honesto, de carne e osso, mesmo que desmembrados após sua morte. Pensemos em sua imagem não como a de Jesus Cristo, mas como daquele padeiro amigo, ou do policial na calçada. Um homem como os outros. Seu valor foi seu sonho e por ele foi supliciado, não pela imagem que afoitos artistas criaram para agradar à falsa História Pátria.


Pobre Tiradentes, a revolver-se nos muitos lugares onde enterraram seus restos, de raiva do que fizeram com ele...