quinta-feira, 14 de dezembro de 2006

ApErtamentos


Vinte e tantos anos atrás, o insular desfrutava do prazer de morar em uma casa. Naquele tempo, para seduzir possíveis compradores, os construtores dessas torres de pedra, aço e vidro que transformaram a ilha em um ouriço, eram obrigados a oferecer apartamentos espaçosos. Assim podia-se conciliar o conforto de uma casa com a conveniência de um apartamento.


Com o tempo e à medida que as casas foram sendo substitídas pelas terríveis torres, quase que inverteu-se a situação. Na mesma proporção, reduziu-se a área dos apartamentos. Hoje há muitíssimos insulares engavetados. Engavetados? Sim, pois nada mais adequado do que essa expressão. Uma consulta às folhas de notícias locais e especificamente aos reclames desses construtores apresenta um desenho em perspectiva da torre, geralmente esquecem-se dos postes e transformadores que infestam as ruas, há carros modelo esporte e jovens em profusão e em permanentes férias. Já as plantas são quase que um mistério absoluto e quando são - de péssima vontade - apresentadas, aparecem em escala milimétrica, ou microscópica. Já o que esses senhores chamam de "área de lazer", geralmente constituídas por uma piscina rasa, uma churrasqueira de alvenaria, banhos turcos e pátios e mais pátios e quadras e mais quadras de cimento, recebem um destaque só comparável aos grandes do esporte local. Fico só imaginando quem pagará pela astronômomica manutenção desses verdadeiros principados: provavelmente os generosos construtores já que certamente são brindes. Um estudo à lupa das pouqíssimas plantas disponíveis, por este náufrago que estava habituado a ler plantas navais lá na Escócia, revelou-lhe coisas incríveis. Uma delas se faz pelo método da contagem de lugares: conta-se o número de pessoas que dormem nos croquis das tais plantas. Após, tenta-se colocá-las todas para jantar ou sentar na sala ao mesmo tempo. Pois saibam, caros herdeiros, que dificilmente isso será possível, a menos que adotem o sistema dos grandes navios de servir as refeições em vários serviços. Naturalmente que a recepção de amigos ficará absolutamente prejudicada dentro dos parâmetros normais de privacy preconizando a porta de entrada ficar cerrada. Rumores há de festas que espalharam-se pelos corredores do prédio, escadas e até mesmo elevadores.


Outra coisa bastante interessante é o depósito existente em várias dessas plantas. geralmente próximo às cozinhas. Serão para mercadorias ou vinhos? Em pouca quantidade, acredito, já que seu espaço é bastante reduzido.


Semana passada, por puro esporte, já que meu covil satisfaz tanto a mim quanto ao meu bolso, fui visitar uma meia-dúzia dessas habitações. Pois foi então que descobri a razão da pouca divulgação das blue prints: elas são todas iguais. Como sou pessoa curiosa, armei-me de trena e constatei para meu assombro e desconforto dos simpáticos corretores que alguns dos dormitórios dificilmente comportariam simultaneamente guarda-roupas e camas de tamanho decente a menos que suas portas não se abrissem ou fossem de correr. Ouve-se falar de insulares internados às pressas em hospitais para tratar de ferimentos às mãos. Haviam-nas metido na vidraça da janela, ao espreguiçar-se de manhã. Quando indagados a respeito da economia em tomadas de energia elétrica, contra a quantidade de aparelhos que uma família normalmente tem e o perigo de utilizar-se de adaptadores, esses pobres rapazes não conseguiram articular explicações. Talvez seja alguma instrução dos poderosos da Corte para economia de energia.


Ao visitar as garagens, caríssimos leitores, lembrei-me de minha terra e fascinei-me pela profusão de colunas, idênticas às masmorras que por engano frequentei em Escócia. Os corretores orgulhavam-se ao enfatizar a disponibilidade de uma ou mais vagas para apartamento, mas quando medi-as, ficou claro que esses pequenos caminhões que ora navegam preguiçosamente por nossas avenidas dificilmente caberiam nelas, a menos que fossem serrados ao meio. Eficientes, os profissionais garantiram-me que os regulamentos do condado estavam sendo cumpridos à risca e quanto a isso, quem é este pobre náufrago para contestar o que for? Soube, em baixa voz, que muitas e muitas dessas garagens sofrem por esses veículos invadirem a área de tráfego com sua proa por meia braça mesmo estando a popa encostada à parede do fundo !


A parte dolorosa foi a lista de preços. Meus herdeiros! Por muito menos que isso, em certos países da Europa Oriental, um construtor seria acusado de infâmia e ganância pagã e impalado em execração pública ! São pequenas fortunas que certamente tornam dificílimo comprar-se e viver-se em um apartamento novo simultaneamente pois ou se paga ou se come; sem pensar em coisas tão ridículas quanto móveis ou contas. Se antigos moradores de apartamentos grandes desejarem trocar seu imóvel confortável, porém velho e decadente, por um novo, terão que admitir a mudança para verdadeiras iron maidens tamanho família. Os recém-chegados ao mercado e ávidos pelo bairro da moda não têm escolha. Já os espertos, dispensam o prestígio de bairros nobres, adquirem um belo apartamento antigo na Cidade, reformam-no e ainda sobram bolsas de moedas de ouro para mobiliá-lo extravagantemente.


I'm flabbergasted, dear friends, deeply flabbergasted...

Nenhum comentário: