sábado, 2 de dezembro de 2006

Domingo


Domingo, quase. Antes que me perguntem, não existe sexta-feira na minha vida. Existe é uma pobre senhora que me atura de domingo a domingo.
Exatamente neste domingo cedo, iremos fazer uma maratona de hospitais já que ela é médica e precisa checar se seus pacientes ainda respiram. Seguiremos de automóvel nessas avenidas que têm uma estranhíssima sinalização. Explico-me.
Aqui perto de casa há uma dessas avenidas, portentosa, arborizada e permanentemente ocupada por veículos absolutamente diversos. Há porém uma curiosidade nela que é coisa talvez virótica na sinalização horizontal insular. Sabem desenho animado? Aquela história de um do la si já? e o bonequinho dá um passo atrás antes de correr ou mergulhar? Pois é isso. Ao seguir por uma avenida reta, ao desejarmos virar à esquerda, somos saudados por uma marcação à tinta no chão para que nos desloquemos para a direita, para depois voltar à esquerda. Algo espantoso e que só existe aqui. Fico achando que algum nativo pintou esse tipo de sinalização sob efeito de alcalóides nalgum canto, aquilo ficou e depois passaram a imitá-lo sem saber a razão ou temerosos de errar ou transgredir algum dos milhares de regulamentos que pululam tal piolhos nas cabeças burocráticas. Lembra-me também algo ocorrido mais ou menos um ano após a Ampex lançar o primeiro aparelho de video-tape: apareceu um clone japonês rigorosamente idêntico. Tão idêntico que até erros de usinagem no gabinete, tais como orifícios inúteis foram cuidadosamente copiados.
Essa coisa de imitar os outros é comum na língua lusitana. O primeiro a dizer "TV a cores" foi imitado por coortes por décadas a fio e ocasionalmente ainda o é por saudoso e distraído nativo. O primeiro ao delirar que preço fora algo como violão e que dessa sorte fora praticado também tornou-se messias e passou a ser imitadíssimo.
Curiosa terra. Ando necessitado de uma boa garrafa de minha saudosa e distante Escócia...

Logo depois


Foi grande a aflição, queridíssimos leitores, ao tentar atravessar uma rua pela primeira vez. Foi ali na Desembargador Santos Neves da época que, de tão tranqüila, a prefeitura abandonava caçambas de lixo nos retornos a fim de juntar ratos e baratas que de outro modo infestariam esgotos. Eventualmente era depositado lixo ali e mais eventualmente ainda esse lixo era colhido.

Pois fui atravessar exatamente na altura de um desses retornos e ali dei-me conta de uma particularidade local que perde-se com velocidade: a mudança sutil e localizada da mão de direção. Uma dessas leis não escritas, mas cumpridas à risca pelos nativos. Dirige-se pela direita como em todo o território nacional exceto nos retornos. Ali imperava a mão inglesa! Olhando para o lado direito, quase fui atropelado por ágil Kombi cujo motorista, ao trafegar à bretã, ainda tratou de tentar educar-me: "tá doido?". E foi minha segunda revelação !
A Kombi pertencia à ainda existente, graças aos céus, Sociedade de Assistência à Velhice Desamparada. Seria esse um oxímoro, um paradoxo ou um sintoma?
A tal sociedade ainda existe e suas Kombis andam para cima e para baixo naquela aflição de não perderem tempo ou mais e mais velhinhos serão desamparados a qualquer momento: os tais velhinhos que mesmo sendo assistidos pela tal Sociedade teimosamente continuam a dizerem-se desamparados, os ingratos!
Deitei ao mar garrafas e garrafas com mensagens não de socorro pois este náufrago aqui vive muito bem, mas com apelos à constatação a ímpar associação de conceitos vicejando tão e somente nesta ilha!

História antiga


Pois foi, caros leitores, há muitos e muitos anos - provavelmente antes de meu naufrágio - em viagem exploratória, que tive meu primeiro contato com a personalidade insular. Foi ao apreciar a grande placa em imóvel outrora fronteiro à praia do Canto: "Sede da Cruz Vermelha". Ora bolas. Para que diabos o "Sede"? Não bastaria "Cruz Vermelha"? Ou será que haveria um ritual misterioso, secreto que obrigasse a identificação indubitável de sede e filais? Pois saí à caça da "Filial da Cruz Vermelha" que poderia estar tanto nas imediações da poderosa sede quanto do outro lado da ilha. Jamais foi encontrada.
Isso me tirou o sono por anos a fio, até que arrancaram a tal placa. Tenho saudades. Será que está guardada em algum lugar? Merece estar em museu.

Intervalo


Será que no início é assim? Estou louco para escrever mais uma besteira qualquer. Dane-se...

Meu último passeio




Mais tarde passarei para vocês lembranças mais antigas já que é coisa de velho guardar memórias longínquas e esquecer-se das recentes. Pois saibam, herdeiros de minhas observações, que hoje vi uma "School of Commerce", assim mesmo, em bretão. Fico fascinado pela desenvoltura com que os autóctones navegam em minha língua materna e por vezes desconfio ser essa a verdadeira língua do lugar. Claro que volta e meia falham em certas sutilezas, como o emprego da apóstrofe, mas isso até aqueles selvagens das colônias do Novo Mundo o fazem.
Mas voltemos à "School of Commerce", ou escola de comércio. Seria a arte de comerciar aquela de encrencar-se? Como passei quase duas décadas envolvido na tal lamentável atividade - e, sem dúvida, encrenquei-me - acho que sim. A tal escola chama-se Fucape. Pois, se assumirmos que o idioma dominante do local seja o bretão, tal nome soa como "fuck-up" cuja tradução em lusitano seria por demais ignóbil para constar de minhas pobres páginas, nestes raros papéis que consegui salvar no meu naufrágio.
Surrealismo ou inconsciente? Ou será que essas duas coisas na realidade (!!) não sejam mais do que uma só?
Depois volto.

Perdido na ilha há 23 anos


Fazem 23 - ou seriam 24 - anos que vim dar c'os costados a esta estranha ilha. Muito estranha mesmo, paradoxal, surrealista... Tentarei lembrar do que aconteceu, do que vi de inusitado. Será minha herança.