domingo, 7 de janeiro de 2007

Colegas náufragos

Coisa especial nesta ilha, meus herdeiros, é a quantidade de náufragos que cá arribam. Vêm dos quatro cantos e se deixam ficar. Conheço até dos antípodas, daquele lugar onde nevou em pleno verão, como já mencionei. Há os dos pampas ao sul do rio da Prata, com incurável sotaque; os de França, também com sotaque inalterável; os de terras bandeirantes, irriquietos; os fluminenses, saudosos. Muitos.


Um desses, inventou de acreditar no hipotético gosto de leitura local e manteve por muitos anos uma livraria, que congregava uma enorme quantidade de ociosos e uma muito reduzida de compradores. Lá pelas tantas, resolveu fechar as portas, confessando que se ganhara um centavo por minuto de papo e estaria milionário; já com os livros, não. Figuras absolutamente excêntricas lá iam diariamente beber de seu café e trocar idéias. De quando em vez, ia também filar-lhe o café e deixava-me ficar em canto discreto a observar as levas dos mais díspares personagens insulares. Ia do milionário ao mendigo; do velhíssimo à criança; do discreto ao escandaloso. Políticos marcavam encontros em seus desvios para conversar assuntos sigilosos. Outros marcavam encontros que ultrapassavam o social. Casamentos ali se fizeram e, desconfio, filhos dali se originaram.


E as noitadas de autógrafos, amigos? Iam às tantas, com todos bêbedos. Lá fora a chover canivetes - era quase uma constante. Aquilo enchia, transbordava para as calçadas e os aparelhos de refigeração de tudo faziam para dar conta da multidão, inutilmente. Por ali passaram poetas, escritores, músicos, acadêmicos, autoridades, artistas, personalidades. Pessoas do mundo todo e também das mais humildes vilas do interior. Não era necessário chamar guarda pessoal, como hoje é indispensável e jamais ocorreu transtorno ou furto.


Tentarei me lembrar de uma ou outra passagem interessante que juntarei à minha leva de lembranças. A primeira que me vem é a do Juiz de direito, extermamente discreto e tímido, que foi encurralado pela moça faladeira por mais de uma hora. Do outro lado do recinto, ouvia-se o despejar de sons que fatalmente estavam fuzilando o pobre homem, sem que nenhum socorro, de propósito, lhe fosse lançado. Desapareceu por uns tempos...


A ilha mudou muito.


3 comentários:

Beth Kasper disse...

Quando começares a ministrar "oficinas literárias" que ensinam a escrever desta maneira tão original, sou a primeira candidata. Meu vou, daqui do sul, arribar nesta ilha pelo tempo que for necessário. Ou isto não se aprende?
Visita ilustre, hein?

Beth Kasper disse...

Um adendo:
A visita ilustre é a da foto!
Não a minha, visse?
:o)

Dani Morreale Diniz disse...

Mas quando Don Quixote ganhou a fúria de olhos gananciosos eu ainda não havia dado conta da vida!

E quando abri os olhos e dei conta de uma parte; quando poderia partir para àquela ilha, já era a ilha!

Agora só posso conhecer o Crusoé... AINDA BEM!