terça-feira, 20 de abril de 2010

Tiro e queda


Pior do que tiro e queda nesse caso bem específico, é antes levar uma trombada de outra carruagem, a caminho do boticário. Nada grave, though.
Pois o cruel cirurgião condenou-me às tais torturas severíssimas a serem levadas a efeito em sete dias. Antes disso, extrair-me-ão pints de sangue para não se sabe que propósitos de magia. Sobrevivendo este infeliz bretão quer o físico que um de seus colegas abra-lhe o ventre e corte um pedaço do estômago afim de que perca peso de modo drástico. Só por andar ele (eu) um pouquinho acima do peso. Argumentou que o tal procedimento, recomendado outrora para gordos morbidamente imóveis em colchões achatadíssimos e só deslocáveis por guindastes seria agora apropriado para os meros obesos.
Minha senhora já me proibiu de sequer pensar nisso e transformou-se em torturadora-mor, prometendo magros repastos e exercícios diários. Nisso tem razão a doce criatura. Em ambos casos teria que fazer regime, que o faça então sem me faltarem metade das tripas.
Estou acabado, caríssimos. Derrotado.
Meu reino por um leitão assado!


segunda-feira, 19 de abril de 2010

Médicos


Enfrentei os mares mais bravios, os ventos mais fortes. Combati piratas, feri e fui ferido. Matei (mas não fui morto, claro...). Fugi de selvagens que queriam jantar meus miolos. Fugi dos cobradores de impostos do Rei da Bretanha. Naufraguei oito vezes.
Nada disso se compara ao que me espera amanhã!
Ida ao médico, para que ele me diga que devo fazer tudo o que não faço e deixar de fazer o que faço; comer o que não como e deixar de comer o que como e ainda por cima fazer exercícios terríveis num aparelho de tortura, conectado a fios.
Estou apavorado, caríssimos!

domingo, 18 de abril de 2010

Tesouros na ilha?


Caríssimos.
Estive a estudar a história deste quinhão tropical e muito aprendi. Por exemplo: para cá vieram muitíssimos piratas. Em busca do quê é um mistério pois naquele tempo as matas estavam nos calcanhares dos insulares, cheias de selvagens, feras, insetos, charcos, pântanos e desânimo generalizado. Aguada, alguma. Mesmo assim bastando somente para saciar a sede dos poucos portugueses do local. Minas? Só de areia ou granito. Concluí então que para cá vinham para enterrar tesouros! Disso fiz parte ao burgomestre de então que riu-se de mim. Esqueci o assunto até uns anos atrás quando iniciou-se febril esburacamento do lugar. Incessante. Deixam buracos abertos e partem para outros.
Faria sentido minha imaginação?

sábado, 17 de abril de 2010

Cidade


Escarnecem, caríssimos, certos energúmenos quando alguns d'entre nós comentam que vão ou foram à cidade! "Tolice", latem do fundo de sua inocente ignorância. "É centro", continuam com o doce sorriso apedeuta aos lábios.


Pois a falta de informação dá nisso. Repetem o que periodistas - sempre preocupados em produzir muitíssimo sem tempo para o estilo - dizem. Qualquer cidade parte de um núcleo que pode ser central, mas no caso desta ilha, ficou meio de lado. A cidade cresceu assimetricamente - como toda cidade à beira-mar - e um de seus extremos pode distar milhas do lugar em que foi fundada; enquanto o outro fica ao lado. Pertinho do que seria o "centro" daqui, ameaçam os vizinhos de Saint Torquato e de Paul - que, pelo nome, deve ser inglês - em outro feudo. Então cabe sentido em chamá-lo de "cidade". Um morador do condado daquele afastado extremo que mencionei e cujo nome agora revelo, Cambury Gardens - se é assim mesmo que se chama o verticalizante lugar, em épocas priscas, mas não muito longínquas, precisava reservar um dia inteiro para a aventura de comparecer a uma repartição Real na nada central Vitória.


Tudo isso posto, acho lindo dizer-se: "vou a Vitória", incomparável, poético e sumamente preservável. Tradições fazem um povo, meus herdeiros, geram cultura.


Se não bastassem essas observações, caríssimos, cabe lembrar que a tal expressão é poliglota: em francês, inglês, espanhol e quiçá italiano. Já os germânicos, que ao contrário dos povos anteriores, acostumados aos litorais e com suas cidades esparramando-se prazeirosamente ao longo de belas praias, referem-se ao núcleo mesmo. Ficam bem mais tranquilos assim na sua rígida e regulatória disciplina. Devemos nos lembrar também que praias merecedoras de tal nome lá não as há, com exceção dos gélidos e abandonados areais fronteiros ao Mar do Norte, ao largo dos quais muitas embarcações da eficiente liga Hanseática encalharam. Os pobres, então, acorrem com grande urgência em seus dias de folga às dos outros, fiquem onde ficarem, para se dourar ao sol, qual leitões, ingerindo notáveis quantidades de cerveja para bem temperar a carne.


Se lhes fosse, alíás, solicitada sua opinião a respeito dessa discussão, olhariam para o interlocutor espantadíssimos por alguém dos belos trópicos perder tempo de boa bebida com esses assuntos...

sexta-feira, 16 de abril de 2010

Meu pobre mestre


Todo dia olho para ele: solitário, em sua imensidão estática.

Foi meu primeiro ponto de referência nesta terra, logo após voltar a mim, exausto de minhas braçadas no mar revolto rumo à salvação nas dolorosamente grossas areias desta ilha. Vi-o na distância azul, assim que consegui por-me de pé. Inicialmente confundi sua solitária imponência com um vulcão e preocupei-me com possíveis erupções - como as que testemunhei nas Caraíbas ou nas ilhas batavas do sudeste asiático- mas logo percebi ser inofensivo e tímido monólito.

Para onde fosse, em minhas primeiras explorações, procurava-o e sua majestosa presença sempre me guiou. Protetor de seus vizinhos bastava o Mestre colocar um chapéu de nuvens que incontinenti os insulares armavam-se de guarda-chuvas, galochas ou até botes (para os moradores do condado de Bento Ferreira). Era nosso amigo.

O tempo passou e foi particularmente cruel para com o velho e abnegado referencial insular. Perdeu sua precisão, vencido pelo intenso povoamento da ilha, que com suas novas torres modificou seus outrora puros ares e virou os ventos. Confuso, passou a lançar falsos alarmes, deixou de ser confiável e teve que aposentar-se que, como sabemos, é algo terrível neste Reino.

Uma pena.

Pobre morro do Mestre Álvaro em cujo chapéu confiava-se cegamente. Hoje esse adorno não passa disso ...

Jaz o morro, lá nos confins de nossa vista, ainda magnífico na sua obsolescência meteorológica, aguardando que os novos ventos, que lhe furtaram o ofício, desgastem-no além das memórias futuras.



Imortalizado pelo mestre Raphael San.

Terei eu voltado?


Talvez tenha eu despertado de minha modorra, meus herdeiros. Ontem convocado por velho amigo, fui-me à universidade local para falar de livros a jovens, menos jovens e, sobretudo, aedes-aegypti.
Senti-me saindo do olvido em que náufragos se metem, particularmente os que cruzaram a cordilheira dos cinquenta anos e estão a descer pelo outro lado. Essa descida é sempre rápida.
A gentil audiência constituiu-se em símbolo dos antigos amigos a quem revendia meus livros, mil anos atrás.
Faltou, contudo, sublinhar aquela mágica do texto que não me canso de repetir: intemporal, internacional e poliglota. O autor, tenha ele escrito na língua que for, na época que foi ou onde quer que tenha sido sempre encontra uma maneira de confidenciar ao seu leitor, naquele mergulho que mil garrafas do melhor rum do Caribe são incapazes de provocar...


Tempus fugit


Passam-se os anos, caríssimos e velas amigas não vejo ao horizonte. Abandonado estou e abandonado ficarei nesta estranha ilha a que já chamo de lar.
É claro que sempre entranharei o clima, suas duas e únicas estações que mencionei anteriormente - ao invés das quatro bem marcadas de minhas ilhas britânicas - verão e inferno.
Grande foi o sofrimento deste pobre saxão no último inferno. Não havia tréguas nem refúgios. Os artificiais que consistem em engenhoso resfriamento de ar é cobrado em bolsas de ouro todo mês pelo responsável por sua energia. Não há como florescer neste canto algo além do lazer, da sombra e da água de côco.
Pois que o seja, ora bolas, e que fiquem armadas as redes, localizadas as boas sombras e esquecidos os aborrecimentos.

terça-feira, 22 de julho de 2008

Cocô-Boys


A primeira vez que ouvi esse termo local, prezados leitores, pensei referir-se aos pouco higiênicos vendedores de água de côco da ilha. "Não, não", desesperou-se amigo insular. Então associei à deliciosa fruta asteca, que conheci outrora em minhas viagens pela América Central, o Tchocolatl, conhecido pelos bretões como cocoa. Impacientou-se mais ainda o amigo insular que, mudo por meu absent-mindedness apontou-me estranhíssimo veículo. Era algo que quase raspava o chão, de tão baixos estavam os eixos. Brilhava, por camadas e camadas de cera. Em sua traseira um curioso enfeite de metal cromado com uma bola idem. "Eles adoram um engate traseiro" confidenciou-me o amigo. Eles quem? Perguntei. "Ora, Crusoé", continuou o amigo, tipicamente omitindo parte de meu nome completo. "Os cocôs-boys". Foi então que percebi, saindo do tal veículo, que se havia imobilizado, dois rapazes em tudo idênticos. Estavam ocultos no seu interior pois até os seus vidros eram diferentes, negros, com um propósito que me escapava naquele momento. Pois os dois autóctones da mencionada seita, como já disse, eram idênticos. Óculos escuros que não geravam um pingo de simpatia por quem quer que os visse, vestimentas idênticas (uma camiseta negra com uma espécie de águia estampada) e meio musculosos, mas não eram músculos de trabalho. Olhei espantado para o amigo e indaguei, largando do espanto e ingressando na curiosidade, se os tais não seriam pouco afeitos à companhia feminina, já que pareciam um casal e apreciavam manter-se ocultos dentro do tal veículo. Meu amigo respondeu com um olhar que dizia tudo. Imeditamente veio-me à mente algo que soía acontecer a bordo de galeões em longas jornadas. Atos esses imediatamente corrigidos, após sova, com passeios dos envolvidos sobre a prancha!
Fiquei, pois, a contemplar o insólito casal, a nutrir-se de algo desagradavel e furiosamente gorduroso em estabelecimento de pasto vizinho. Lá pelas tantas, retornaram ao veículo. Um deles, fez uso de uma mágica: apertou ostensivamente algo em sua mão e sua estrutura semovente respondeu com pios! Parecia haver destravado as portas, que estavam fechadíssimas malgrado haverem deixado seu transporte à vista d'olhos.
Ingressaram naquela carruagem e desapareceram da vista dos demais mortais, graças aos tais vidros escuros. Pouco após, caríssimos amigos, deu-se o inesperado: vindo das profundezas do inferno o som de terremotos, de continentes rasgando-se, uma cacofonia inacreditável. Joguei-me ao chão, rezando pela proteção de meu São Jorge. O tal carro tremia todo. Ia explodir!
Fui acordado de meu pavor pelo amigo, bastante divertido com meu espanto e medo:
"É o som deles", explicou.
"Som, como?" Horrorizei-me? Então o amigo explicou que esse tipo de gente tão logo oculta-se no interior de seus automóveis, põe-se a demarcar território emitindo barulhos infernais em volume inacreditável. Não acreditei. Para mim era para procederem àqueles tais atos nefandos em total ausência de testemunhas.
Ligaram seu motor, aquilo sacudiu-se. Acenderam uma potente luz azul. "Custa uma fortuna", informou-me o diligente amigo. Mais desconcertado ainda indaguei se esse tipo de rapazes viaja muito em estradas perigosas, desertas e escuras, necessitando então de poderosa iluminação. "Imagine", disse me ele "não saem daqui, isso é para mostrar-se aos outros". Se não têm, não valem nada. E está sempre no alto.
Pouco após, aquele insólito veículo pôs-se a andar, com visível relutância, e imiscuiu-se pelo trânsito local, em baixa velocidade, atrapalhando a todos. O tal "som", contudo, fazia-se ouvir e a tudo tremer, por um bom tempo. Finalmente, despediu-se o amigo e, como sempre fiquei eu a contemplar o mar, cofiar a barba e mergulhar em meus pensamentos.
....
Já ia alto a lua, horas após meu amigo ter-se recolhido ao seu castelo, que emergi de mais uma de minhas profundas meditações. Nesse ínterim, não pude deixar de observar outros automóveis em tudo idênticos, ruidosíssimos, carregando com outros desses estranhos casais que fazem a meta de sua existência exibir-se a casais semelhantes, a iluminar de azul intensíssimo quem ousasse meter-se à sua frente. Espanto, espanto, espanto. Isso em terra de mulheres belíssimas que vagam em bandos. Talvez seja essa a razão de algumas estarem juntas demais - que Deus me perdoe.

Estranhíssima ilha!

quinta-feira, 10 de julho de 2008

Volta?

Pois garrafas e garrafas foram deitadas à maré baixa, caros amigos imaginários. Saqueei todas as tribos das redondezas à cata dos invólucros impermeáveis para meus maus escritos. Poucas respostas obtive, mas pelo menos uma incentivando-me a coalhar os sete mares em continuidade com os envelopes flutuantes.
Volto, então. Volto a observar o que se passa neste quinhão de terra incomum em que não se lavra mais o bom milho e, ao invés da saúde, opta-se pela fumaça negra das estruturas semoventes dieseis que jamais viram uma roça sob suas rodas de borracha.
Mês passado viajei à antiga côrte que, apesar dos tempos difíceis, mantém-se majestosa. Burgo muito mais rico e poderoso que este entretanto não apresenta a mesma concentração dos brutais semi-caminhões que ora entulham nossas vias carroçáveis somente em tempo seco.
Impera aqui a ilusão do roceiro ausente. Em um determinado momento, todos assumiram a condição de roceiros tristemente exilados em urbes. Tão logo e não interessando que sacrifícios possam ser feitos, metem-se nesses absurdos; ouvindo música rural de insondável má qualidade e eventualmente ostentando chapéus de nossos vizinhos anglos milhares de milhas ao norte. Pouquíssimos saberão a diferença entre ovo de pato e ovo de galinha e saem por aí, protegidos pelas películas negras que os ocultam dos olhares de censura dos cidadãos de bem com o beneplácito das autoridades que permitem que um recém-licenciado possa conduzir um verdadeiro tanque de guerra de várias toneladas.
Por via das dúvidas e estando o tempo meio frio, encolho-me no meu ninho do décimo andar, apavorado de medo...

domingo, 2 de março de 2008

Tempo

Num átimo foi-se um ano da última gravação em garrafa do diário do náufrago. Pudera, meus caros! A ilha foi invadida por uma horda de escravos a escavoucá-la em todo e qualquer sítio. Seria ouro? Tesouros? Não os meus pois aqui nada enterrei, e nem teria nada a enterrar. Ficam autóctones e visitantes prisioneiros em sua ilha e peplexidade.