segunda-feira, 1 de janeiro de 2007

Música


Pouco após saber-me em solo firme e estabelecer minha sobrevivência nesta ilha, caríssimos fui, como já disse, inteirar-me dos hábitos locais.


Algo que sempre me agradou neste reino é a música, sobretudo a autêntica música nacional que une esta vastíssima terra, do tamanho da Europa: o samba.


Cá chegando, ele imperava, correndo nas veias dos súditos desta boa terra. Pouco a pouco, porém, estranhos indivíduos puseram-se a escarafunchar empoeirados cantos da província em busca de algo que seria autenticamente "da terra". Isso sempre me causou espécie, já que nem sempre o que é local é melhor e nisso reside o comércio. Troca-se o que eu tenho de melhor pelo que o vizinho oferece de melhor dele. De repente ressuscitaram, sacudindo teias de aranha, um certo ritmo chamado de "Congo". Uma mera curiosidade folclórica que gozava de merecido esquecimento já que se esparrama num cantarolar dançado, em meia escala, sonolento e interminável. Espetáculo de uma só vez, para polidamente se considerar como "deveras interessante" e onde está meu chapéu, boa noite e até nunca mais. Durante anos a fio de tudo fizeram a fim de que as pessoas gostassem disso, mas como a imensa maioria dos insulares e provincianos não é apaixonada por folclore, os esforços redundaram inúteis. Era terrível: em qualquer manifestação cultural, era-se forçado a tolerar uma sessão de hora e meia dessa bocejante ladainha. Então, fugia-se das tais manifestações culturais. Vencidos os folcloristas, esgotadas as possibilidades locais com a volta do Congo aos museus e teimando-se em esquecer que o samba é algo tão natural e local quanto o feijão, deram por importar o que de pior havia em outros cantos do reino. Coisas de cruéis vendedores de música enlatada.


Talvez por serem artigos em promoção, iniciaram por algo de tal maneira inacreditável que inicialmente julguei estar diante de uma grande enxova. Pelo uísque escocês ! Pensei que fora brincadeira. Não era, eram duplas de infelizes goyanos, com baixíssimo conhecimento musical e trajes apertadíssimos, a confessar tormentos íntimos profundamente constrangedores e em vozes torturantes. Fomos inundados, prezadíssimos leitores, por hordas desses pobres indivíduos, festejadíssimos, em infinitas variantes, de tal maneira que, a folhas tantas, chegaram a induzir o aparecimento de curiosíssimos seres vestidos tal qual os vaqueiros das colônias inglesas do norte. Mostravam-se pelas ruas de roupas e chapéu de vaqueiro despertando olhares estupefatos dos demais transeuntes. Nessa ocasião, larguei da garrafa já que havia-me convencido de estar às raias do delirium-tremens, mas era real. Só faltavam as esporas e tal sem dúvida ocorria por elas possivelmente danificarem os tapetes de seus imensos, caríssimos e polidíssimos veículos de carga que nunca haviam visto campo. A ilha, queridíssimos, transformava-se em muro das lamentações com choros convulsos e passarela de cowboys capiríssimas e fajutos. Felizmente o insular, apesar de prezar muitíssimo uma novidade, também cansa-se dela e voltaram as esporas e os caubóis para os cafundós.


Foi importada então do norte a barulheira infernal de boçais dos quatro sexos a urrar vulgaridades a massas ululantes mesmerizadas pela agonia ensurdecedora dos acompanhamentos amplificados e pelo consumo de aguardente. Essa foi a pior de todas as fases já que, como o volume sonoro da tal, digamos, manifestação é de tal forma intenso que solaparia qualquer construção, tem ela que ocorrer ao ar livre, invadindo o repouso dos vivos e dos mortos. Fechavam ruas e cobravam ingresso dos endinheirados cidadãos que lá desejavam esborniar-se numa das mais escandalosas violações dos direitos individuais já vistas. Os ricaços ou perdulários que pagavam pequenas fortunas para acotovelar-se nos entrudos e urinar onde quer que fosse, julgavam-se no direito de posse da área e reagiam violentamente a qualquer tentativa dos habitantes em enxotá-los para os caixa-pregos. Esse terror durou anos a fio, enriquecendo muitos mas, como felizmente o insular cansa-se do que não é do sangue, extinguiu-se.


Volta-se agora ao samba, queridíssimos, para gáudio da cultura local. Nunca morreu, apenas aguardou pacientemente que seus filhos pródigos à casa paterna retornassem.


Alvíssaras! Alvíssaras!

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